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✢ CALVINO, ÉTICA E WEBER: APROXIMAÇÕES E CONTRASTES
Dr. Antonio Maspoli *
Sobre a ética protestante na sociologia de Max Weber
A sociologia de Max Weber (1864-1920) é ampla e consistente. Jaspers (1977) e Prades (1966) parte da distinção entre quatro tipos de ação: a ação racional com relação a um valor, a ação afetiva ou emocional e, por último, a ação tradicional. As ciências da história e da sociedade possuem três características originais e distintivas: elas são compreensivas, históricas e se orientam para a cultura. A Sociologia é possível pelo fato de sermos capazes de compreender, o que resulta na possibilidade de explicar fenômenos singulares sem a intermediação das proposições gerais. Diferente da história, do relato daquilo que não acontecerá uma segunda vez, a Sociologia se preocupa da reconstrução conceptual das instituições sociais e do seu funcionamento. A Sociologia, para ser ciência, não deve fazer julgamento de valor, mas deve relacionar a matéria estudada com um valor (relação com os valores) o Sociólogo pode ter o senso de interesse daquilo que os homens viveram para compreendê-los autenticamente; mas é preciso distanciar-se do próprio interesse para encontrar uma resposta universalmente válida a uma questão inspirada pelas paixões do homem histórico.
A sociologia weberiana se inspira numa filosofia existencialista que propõe uma dupla negação: Nenhuma ciência poderá dizer aos homens como devem viver, ou ensinar às sociedades como devem se organizar e, também, não poderá indicar à humanidade qual é o seu futuro. Por causa destas negações, Weber se opunha a Durkhein e Marx. A Sociologia pretende explicar casualmente, além de interpretar de maneira compreensiva. Esta investigação causal se orienta em dois sentidos: Causalidade histórica e causalidade sociológica. Todo o pensamento causal de Max Weber se exprime em termos de probabilidades ou de oportunidades, para ele não há determinação unilateral do conjunto da sociedade por um elemento, seja ele o econômico, o político ou o religioso. As relações são parciais e prováveis. Segundo Weber, (1982) a política passa a ser uma das atividades nobres da humanidade porque o futuro é incerto e alguns homens podem forjá-lo. Uma das formas de se refletir a respeito da história é de compreender que um acontecimento histórico teria sido diferente se pessoas não agissem ou tomassem decisões diferentes, se as decisões fossem tomadas ou não, e se as circunstâncias não acontecessem ou ocorressem de forma diferente. Essa interpretação tem o mérito de devolver às pessoas e aos acontecimentos sua eficácia e de mostrar que o curso da história não está determinado antecipadamente, pois os homens de ação podem alterá-lo. Ao estabelecer a teoria da causalidade parcial e racional, Weber pretendia refutar a interpretação vulgar do materialismo histórico, pois exclui a possibilidade de que um elemento da realidade seja considerado como determinante dos outros aspectos da realidade, sem ser também influenciado por eles e, também, que o conjunto da sociedade futura seja determinado a partir de certas características da sociedade presente.
A distinção radical entre os fatos e os valores, feita por Weber, parte da proposta feita pela filosofia neokantiana, tal como era apresentada no seu tempo nas Universidades da Alemanha os valores, portanto, não são dados nem no plano sensível nem no plano transcendente, são criados pelas decisões humanas, que diferem dos atos pelos quais o espírito percebe o real e elabora a verdade. Os valores são aceitos por causa do livre arbítrio e da livre afirmação. A ação é produzida pela moral da responsabilidade e pela moral da convicção, sendo que a ética da responsabilidade se preocupa com a eficácia e se define pela escolha dos meios ajustados ao fim que se pretende; e a ética da convicção incita a agir de acordo com os nossos sentimentos, sem referência, explícita ou implícita, às consequências. Outro aspecto importante da sociologia de Weber é aquela parte que o mesmo dedica ao estudo da religião, especialmente do protestantismo. Weber concluiu que a ética religiosa era uma das variantes mais influentes na conduta dos homens nas diversas sociedades, pois o homem age de acordo com a sua cosmovisão, e os dogmas religiosos e as suas interpretações são partes integrantes dessa visão do mundo. Voltemos “A Ética protestante e o espírito do capitalismo” de Max Weber. Neste trabalho serão discutidos aspectos da sociologia da religião em Weber e essencialmente aqueles relacionados com a sociologia do protestantismo, considerando neste aspecto a releitura realizada por Prades (1966). O século XX se iniciou dominado pela obra O Capital de Karl Marx e terminou vencido pela Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber. Muito mais que uma questão de semântica a obra de Weber ressuscitou inúmeras polêmicas sobre a ética protestante do trabalho especialmente em face dos novos ditames econômicos do neoliberalismo que prefigura mais uma ética do consumo do que do labor.
A obra “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” demonstra que Weber não apenas minimiza a variável econômica na estruturação e funcionamento de um determinado modelo social, conforme reivindicado pelo marxismo como tenta explicar a significação cultural e econômica da racionalidade metódica protestantes na geração de um modelo capitalista como aquele praticado pela sociedade norte americana. Segundo Max Weber, a cosmovisão religiosa determina certos comportamentos próprios para a acumulação de riquezas capitalismo. Seguindo a tese de Laveleye (1951), Weber demonstra por meio de dados estatísticos que com frequência, os líderes do mundo dos negócios e os proprietários do capital e alto nível de mão-de-obra qualificada; principalmente, aquele técnico e comerciante especializados nas empresas modernas era preponderante protestante. Max Weber deu novo sentido a doutrina luterana da vocação, doutrina esta que se encontra na base do processo de secularização do mundo contemporâneo. Segundo esta doutrina o homem deve viver para a glória de Deus não só em sua vocação religiosa como também em seu trabalho secular:
“A vocação para Martim Lutero era algo aceito como uma ordem divina, a qual cada um devia adaptar-se. Essa tendência domina o outro pensamento, também presente, de que o trabalho é uma vocação divina, ou melhor, a tarefa ordenada por Deus” (Weber, 1994, p. 57).
Além da racionalidade metódica do protestantismo, Weber observa nas sociedades protestantes a existência da justiça proporcional ou meritória e esta é o centro do sistema de mobilidade social no mundo protestante. Ou seja, os valores e talentos individuais devem ser incentivados pelo estado para que estes possam ser convertidos em energia positiva para o sistema. Esta forma de justiça distributiva seria a responsável última pelo individualismo oriundo do capitalismo moderno. Neste sistema a livre iniciativa é altamente incentivada e premiada. Nesta obra Weber (1982) estudou as origens do ethos protestante e realizou seus ensaios sobre a cosmovisão protestante e o desenvolvimento do capitalismo a partir de pesquisas realizadas com protestantes puritanos e concluiu que o protestantismo puritano é portador de um espírito racionalista e metódico capaz de desenvolver com a sua praxes os instrumentos teóricos que dão suporte ao acúmulo do capital que se encontram na base da instauração do capitalismo. Este espírito consiste no modo de vida protestante. Isto é na aplicação da racionalidade metódica nas relações entre capital, trabalho e consequentemente no acúmulo de lucros.
Weber procura demonstrar a validade de sua hipótese estudando a relação entre a religião e o ramo de atividade dos protestantes e católicos em algumas cidades do interior da Alemanha do século XIX e conclui que a religião encontra-se na base da escolha da formação profissional e das atividades comerciais. Os católicos procuram realizar sua formação nos ginásios clássicos porque a indústria e o comércio não os atraia tanto, enquanto os protestantes são atraídos especialmente pelas atividades comerciais e industriais. Posteriormente Weber (1982), estudando estatísticas sobre as atividades profissionais de países onde havia católicos e protestantes, verificou que os protestantes, proporcionalmente são mais numerosos entre os profissionais técnicos e comerciais de nível superior, isto é, o pragmatismo protestante facilita a aquisição de tecnologia e habilidades comerciais, enquanto que os católicos são mais voltados para a metafísica, a filosofia e as questões existenciais. Este modo de vida protestante é responsável nos Estados Unidos pelo surgimento do pragmatismo e de uma certa corrente de liberalismo ligada ao pietismo protestante.[1] A relação que existe entre a religião e o acúmulo de capital segundo Weber consiste em que o protestantismo puritano era portador de um certo espírito próprio para o desenvolvimento do capitalismo. Que espírito é este? A fim de responder a esta questão Weber (1994) afirma as suas teses principais que são: a ética protestante consiste no modo de vida protestante, que seria marcado pela simplicidade e frugalidade e ainda na forma como este encara o trabalho e as riquezas; e quanto ao trabalho, este deveria ser encarado como uma vocação divina e as riquezas como bênçãos do Senhor. Weber (1994, p. 39) demonstra que os puritanos projetaram a ideia de vocação religiosa sobre o labor:
“O trabalho deve, ao contrário, ser executado como um fim absoluto por si mesmo - como uma vocação. Tal atitude, todavia, não é absolutamente um produto da natureza. Ela não pode ser provocada por baixos salários ou apenas salários elevados, mas somente pode ser o produto de um longo e árduo processo de educação.”
Weber destacou alguns aspectos importantes no modo de vida protestante que seria segundo ele os responsáveis pelo acúmulo de capital nestas comunidades. Vejamos algumas destas variáveis. As riquezas eram encaradas pelos protestantes como sinais das bênçãos de Deus sobre os eleitos, todavia estas eram pertencentes a Deus e por isso deveriam ser bem administradas posto que o crente é apenas um mordomo de Senhor aqui na terra. Outro aspecto importante no modo vida cristão consiste na pregação de que estes devem evitar a luxuria e os prazeres mundanos, a única fonte divina de prazer é o trabalho, o qual deve ser realizado de forma metódica e racional. O modo de vida protestante e sua maneira de encarar o trabalho levavam necessariamente a poupança:
“A velha atitude de lazer e conforto para com a vida deu lugar à rija frugalidade que alguns acompanharam e com isso subiram, porque não desejavam consumir, mas ganhar, enquanto outros, que conservavam o antigo modo de vida, viram-se forçados a reduzir o seu consumo” (Weber, 1994, p. 44).
Por outro lado, no protestantismo, o lucro não é visto como pecado resultado da usura. O lucro é encarado com naturalidade como fruto do esforço do cristão para agradar a Deus através do seu trabalho. O resultado da ética protestante é a racionalidade metódica no trabalho que parece ter sido também a gênese da concepção de que o trabalho deve ser igualmente uma atividade organizada dirigida para o lucro. Os puritanos desenvolviam uma religião metódica e absolutamente racional e projetaram este modo de vida nas relações com o capital e o trabalho. Esta maneira peculiar de ver a vida, o trabalho e o lucro Weber entendeu como sendo o espírito protestante. A origem desta visão encontra-se na sua concepção de vocação em Lutero:
“Da mesma forma que o significado da palavra – e isto deve ser sabido de todos – o pensamento subjacente é novo, e é um produto da Reforma. É verdade que certa valorização do trabalho cotidiano secular, contida nesta concepção, já se havia manifestado, não apenas na Idade Média, mas também na baixa antiguidade helenística, e isto será debatido mais adiante. Indubitavelmente nova era, sem dúvida, esta valorização do cumprimento do dever dentro das profissões seculares, no mais alto grau permitido pela atividade moral do indivíduo. Foi isso que deu pela primeira vez este sentido ao termo vocação, e que inevitavelmente teve como consequência a atribuição de um significado religiosos ao trabalho secular cotidiano. Foi, portanto, neste conceito de vocação que se manifestou o dogma central de todos os ramos do Protestantismo, descartado pela divisão católica dos preceitos éticos em praecepta e consilia, e segundo a qual a única maneira de viver a aceitável para Deus não estava na superação. da moralidade secular pela ascese monástica, mas sim no cumprimento das tarefas do século, imposta ao indivíduo pela sua posição no mundo, nisso é que está a sua vocação.” (Weber, 1994, p. 53).
Sob o termo protestante, Weber arrolou os principais representantes históricos do protestantismo ascético: o calvinismo, na forma que assumiu na sua principal área de influência na Europa Ocidental, especialmente no século XVII; o pietismo; o metodismo; e as seitas derivadas do movimento batista. Todos estes grupos religiosos, segundo Weber, de uma ou de outra forma foram influenciados pela doutrina calvinista da soberania de Deus e da predestinação. A partir desta doutrina, o cristão descobre que não vive para si, mas para a honra e glória de Deus, soberano, que decreta os destinos de toda a humanidade e de cada homem. Esta doutrina torna a religião uma experiência absolutamente individual e solitária.
João Calvino deu ao protestantismo francês sua doutrina e organização. Mais rigoroso do que Lutero, suas ideias se estenderam imediatamente e muito, a partir da Universidade de Genebra, Suíça, da qual foi fundador. Suas concepções educacionais foram espalhadas pela Holanda, Bélgica, Escócia, Inglaterra etc. e, tempos depois, nas colônias inglesas na América do Norte (Irwin, 1947; Lessa, s.d.). O sistema de doutrina calvinista é complexo e deriva – se do pensamento de Santo Agostinho, em sua totalidade encontra – se exposto, nos comentários bíblicos de João Calvino e principalmente, em sua principal obra de teologia sistemática, intitulada Institución de la Religión Cristiana. Seu ponto de partida era o mesmo de Lutero.
Calvino só admitia, em matéria de religião, uma autoridade: a Bíblia. Como Lutero, também assegurava que unicamente a fé podia salvar o homem, e não as obras. Partindo da ideia da onipotência e onisciência divina, Calvino afirmou que a fé é uma graça especial que Deus outorga aos eleitos desde a eternidade em oposição à graça comum, concedida a todos os homens em Adão. Esta última inclui a crença na divindade e é inata. A doutrina da soberania de Deus e a crença nesta graça especial, concedida como resultado da obra vicária de Cristo na cruz, é a base para a doutrina da predestinação, a qual afirma que Deus, pela sua presciência e soberania, escolheu alguns para a salvação eterna, enquanto deixou outros entregues ao seu próprio destino eterno. O calvinismo sustenta que, desde a queda de Adão e em consequência de seu pecado, todos os homens são naturalmente necessitados de salvação e santidade, totalmente alienados de Deus e justamente submetidos a seu decreto eterno. O plano de salvação do homem deste estado é, do princípio ao fim, um sistema de graça imerecido. A mediação de Jesus Cristo, incluindo sua instrução, seu exemplo, seu sacrifício na cruz, sua ressurreição, ascensão e intercessão, são os únicos meios de salvação do homem e de sua volta para Deus, pelo arrependimento. Ainda estes meios seriam sem eficácia se Deus não houvesse revelado ao homem uma justificação gratuita, através dos méritos da pessoa e do sacrifício de Jesus Cristo e se o Espírito Santo não aplicasse esta obra no coração dos pecadores.
Para Weber, a doutrina da soberania de Deus e a predestinação teriam gerado o que ele denominou de individualismo protestante. Este individualismo imprime uma marca particular no Calvinismo sobre o mandamento divino do amor ao próximo. Não é o próximo considerado em si mesmo que é o gerador deste amor. O amor ao próximo é uma decorrência do amor de Deus pelo homem pecador e por isso este amor ao próximo vai concretizar-se por meio do trabalho objetivo em favor do outro e é medido pela utilidade deste trabalho para o bem comum.
Analisando a obra de Richard Baxter, Christian Directory (Diretório Cristão), um exemplo de teologia moral puritana, um manual de conduta totalmente voltado para a ação prática do cristão no mundo. Weber conclui que esta moralidade prática de base ascética levou a um santo desprezo pela riqueza e ao ardor pelo trabalho. O puritano recusa-se a gozar os benefícios da riqueza e o perigo da ociosidade. O resultado desta ética segundo Weber é a acumulação de bens:
“Combinando essa restrição do consumo com essa liberação da procura da riqueza, é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação capitalista através da compulsão ascética a poupança. As restrições impostas ao uso da riqueza adquirida só poderiam levar a seu uso produtivo como investimento de capital” (Weber, 1994, p. 124).
Na tese de Weber (1982), a concepção protestante sobre o lucro e a riqueza é diametralmente oposta a católica romana. Para os católicos o lucro representa a usura e as riquezas podem ser condenadas por isso. Os protestantes acreditavam, porém que o lucro é uma benção divina e as riquezas podem representar um Dom de Deus. As riquezas eram encaradas pelos adeptos das seitas [2] puritanas como pertencentes a Deus e, por isso, deveriam ser bem administradas, pois o crente é apenas um mordomo do Senhor. Por outro lado, o cristão deveria evitar a luxúria e os prazeres mundanos, restando, como única fonte divina de gozo, o trabalho. A combinação entre a racionalidade metódica protestante e o ascetismo puritano desenvolveram o capitalismo na forma como é conhecido no ocidente cristão, segundo Weber, que acentua que não é a doutrina ética de uma religião, mas a forma de conduta ética a que são atribuídas as recompensas dos respectivos bens de salvação que importa (Weber, 1982). Para o puritanismo, as recompensas eram atribuídas a quem se “provava” perante Deus, no sentido de alcançar a salvação e “provar-se” frente aos homens no sentido de manter a posição social dentro das seitas puritanas.
Os conventículos e seitas ascéticas formaram uma das bases históricas mais importantes do “individualismo” moderno, devido ao seu rompimento radical com a servidão patriarcal e autoritária e também devido a sua forma de interpretar a declaração de que é devida maior obediência a Deus do que ao homem. Comentando Werber (1982), Biéler (1990, p. 637) conclui que:
“A ética protestante age no desenvolvimento do capitalismo, de duas maneiras convergentes e extremamente eficazes: sua moral do trabalho e do ativismo prático acumula a produção e força o enriquecimento; seu ascetismo, porém, oposto a todas as formas de luxo e de prazeres inúteis, freia o consumo de riquezas adquiridas e conduz ao acúmulo de capital. O enriquecimento certo a que esta moral conduz não é um alvo, mas uma consequência quase inevitável.”
Além da questão econômica Weber abordou outros aspectos relacionados a religião, como por exemplo, a relação entre a religião e a ciência. A cosmovisão religiosa em Weber (1979) influencia ainda as concepções intelectuais do mundo. A tensão da religião frente ao conhecimento intelectual é grande e fundamentada em princípios. Essa tensão existe pelo fato do conhecimento racional funcionar através do desencantamento do mundo e sua transformação num mecanismo causal; e a religião pela afirmação de que o mundo é um cosmo ordenado por Deus, sendo assim um mundo significativo e eticamente orientado. O aumento da racionalidade na ciência empírica leva à religião, pois a racionalidade fornece os significados para a ocorrência do mundo interior.
É possível uma conciliação entre a religião e a especulação metafísica (mesmo sabendo que esta poderá levar ao ceticismo), como ocorre com o protestantismo ascético e a ciência natural. As diferentes ligações entre a religião e o intelectualismo foram provocadas pelos interesses sacerdotais, a compulsão interiorizante do caráter racional da ética religiosa e a busca intelectualista da salvação produziram a racionalidade metódica no protestantismo; hoje, a religião se tornou um poder supra-humano irracional.
A religião defende que o homem religioso deve libertar-se das substituições enganosas e errôneas, apresentadas como conhecimento pelas impressões confusas dos sentidos e as abstrações vazias do intelecto para perceber o significado do mundo e de sua própria existência. A necessidade de salvação resultou da tentativa de uma racionalização sistemática e prática das realidades da vida; prega-se uma compensação justa para a distribuição desigual da felicidade individual no mundo.
Willian James, por outro caminho, pela psicologia social, parece ter comprovado as teses de Weber sobre o protestantismo europeu do século XIX no protestantismo norte americano do mesmo século. James (1991), filósofo e psicólogo norte-americano, foi um pesquisador da experiência religiosa e sobre os efeitos desta experiência no comportamento do indivíduo. Após analisar mais de cem relatos de experiências vividas por membros das mais variadas religiões que existiam nos Estados Unidos em sua época ele sistematizou seu pensamento na obra As Variedades da Experiência Religiosa. Posteriormente foi o criador do pragmatismo.[3] A partir de uma exaustiva análise da experiência religiosa do protestantismo projetado sobre a sociedade norte americana de então, ele concluiu que na maioria absoluta destas experiências:
“Deus não é conhecido, nem compreendido: Deus é usado às vezes como fornecedor de alimentos, outras como sustentáculo moral, às vezes como amigo, às vezes como objeto de amor. Revela-se útil a consciência religiosa não lhe pede mais do que isso. Existe Deus realmente? Como existe? O que é ele? São outras tantas perguntas irrelevantes. Não Deus, mas a vida, mais vida, uma vida maior, mais rica, mais satisfatória, em última análise, é a finalidade da religião. O amor à vida, em qualquer nível de desenvolvimento, é o impulso religioso” (James, 1991, p. 313).
A partir da tradição weberiana, Niebuhr (1992, p. 40) demonstra que as denominações cristãs desenvolvidas nos Estados Unidos não são frutos apenas de quizilas ou querelas teológicas, mas têm suas origens em fatores sociais concretos e, navegando pelos meandros da história, da ética e da sociologia, reafirma as teses de Weber:
“Todas as igrejas dos pobres, cedo ou tarde, se transformaram em igrejas de classe média porque, tendo superado as necessidades, perderam muito do idealismo nascido dessas mesmas necessidades. A tese de Weber de que a piedade conduz ao sucesso econômico é, sem dúvida, verdadeira.”
Este autor observou que havia uma estreita relação entre denominação e classe social naquele país. Na realidade, tanto a religião influencia no surgimento de uma determinada classe social, quanto esta influencia no desenvolvimento e manutenção de uma determinada religião, e o instrumento desta dialética é a ética religiosa. O mapeamento realizado por este autor sobre igreja e classe social colocou o protestantismo histórico como uma das representações sociais mais bem sucedidas da classe média comercial norte-americana:
“A maioria das igrejas calvinistas da época adquiriram e, desde então, mantiveram caráter definitivo de classe média. É significativo que a distribuição geográfica desta forma de protestantismo coincidiu, desde cedo, com a localização geográfica das classes comerciais emergentes” (Niebuhr, 1992, p. 63).
As principais críticas que se pode fazer ao pensamento de Weber sobre a sua ética protestante consistem na afirmação de que o acúmulo de capital é anterior ao advento mesmo do protestantismo. Outro dado que se deve considerar reside nas evidências de que Weber não se ateve, em sua pesquisa, aos pressupostos teológicos do protestantismo histórico, derivados do pensamento de Lutero e de Calvino, tendo por outro lado fundamentado suas assertivas na forma como os povos ditos protestantes haviam produzido uma determinada cultura a que Weber chamou de ética protestante, todavia pode se perguntar até que ponto a forma como essas populações assimilaram uma ética protestante em suas representações sociais representam o pensamento da reforma e mesmo o pensamento puritano? Destes pontos de vista as teses de Weber são no mínimo discutíveis.
Considerações críticas finais a ética protestante em Weber
Os teólogos calvinistas, de modo geral, procuram justificar e mesmo renegar a relação do protestantismo europeu e norte americano com o surgimento do capitalismo moderno apontado por Weber (1994), e costumam argumentar afirmando que a teologia calvinista não demonstra nenhuma tendência capitalista, e não pressupõe por si só, uma ética econômica. Nisto podem ter razão. Todavia é bom lembrar que as afirmações de Weber não se fundamentam na teologia calvinista, mas sim na apropriação e nas representações sociais que a cultura protestante europeia e norte americana fizeram de algumas categorias do protestantismo, como o estilo de vida ascético, que leva o protestante a ser, ele mesmo o seu próprio convento, sua vida regada, seu culto a pureza, sua devoção metódica e racional ao trabalho.
No entanto o calcanhar de Aquiles de Weber é outro. João Calvino viveu no século XVI e Max Weber no final do século XIX e primeiro quartel do século XX. Pode se argumentar que o acúmulo de capital sempre esteve presente as relações econômicas e sociais entre os povos, no entanto não se pode dizer que existia o capitalismo tal qual foi engendrado na Europa Ocidental e nos Estados Unidos na época de Calvino. O capitalismo era desconhecido de Calvino e da sua geração. Não se encontra na Institutas da Religião Cristã, sua obra magna, e nem nos seus comentários das Escrituras Sagradas nenhum parágrafo defendendo o acúmulo de capital em detrimento da miséria do próximo, encontra-se por outro lado veementes assertivas sobre o amor ao próximo e a forma de expressá-lo: o trabalho em prol do bem comum.
Faz-se necessário considerar que esta forma de capitalismo descrita por Weber, (1994) surgiu após a Revolução Francesa no século XVIII e a Revolução Industrial na Inglaterra no século XIX. Ao contrário do se imagina nos círculos weberianos Calvino também não é o progenitor do individualismo moderno que se encontra na base do capitalismo. No século XVI o conceito de consciência individual e mesmo de indivíduo era relativamente desconhecida. Esta ideia toma corpo após o renascimento, no século XVIII também com a Revolução Francesa como apresentou Holland (1979), na obra Eu e contexto social. O conceito de si próprio tal como é descrito hoje foi posteriormente burilado pela Psicanálise de Sigmund Freud, não é obra de João Calvino um homem que viveu numa época em que o coletivo exercia primazia sobre o individual e a sociedade estava posta sobre a totalidade do indivíduo. O mérito do reformador de Genebra parece ter sido o de tentar estabelecer os limites então desconhecidos entre o sujeito e a sociedade especialmente quando propôs a separação entre a Igreja e o Estado, isto é, lançado as bases da distinção para o estabelecimento de balizas entre a ética da vida privada e a ética da vida pública, também desconhecidas à época de Calvino. Não se pode atribuir a uma única variável, a ética protestante do trabalho, o surgimento de um processo econômico tão complexo quanto o capitalismo moderno.
Por outro lado considerar a participação da teologia calvinista no advento do capitalismo moderno pressupõe que a religião protestante tenha alcançado um alto grau de secularização já no século XVI, quando do surgimento da reforma religiosa. Neste caso fica difícil supor que Calvino e a igreja protestante como um todo, filha do renascimento do século XVI, tenha conhecido tal categoria sociológica, da sociologia da religião, haja visto que o processo de secularização religioso é bem posterior ao movimento reformado tendo se iniciado a partir das concepções racionalistas do século XIX.
A grande contribuição do calvinismo pode ter sido exatamente tudo isto contribui para a construção de uma ética do trabalho. Faz–se necessário lembrar que no Catolicismo Romano o trabalho é encarado como uma maldição de Deus. O Catolicismo, em sua hermenêutica, não considera que Adão trabalhava desde antes da queda como afirma Gênesis 2.[4] Sobre o trabalho, interpretam, porém, que este teve início somente após a queda, isto é, a partir de Gênesis 3 e por esta causa relacionam o trabalho a uma maldição divina.[5] Já os protestantes consideram o fato de que Adão trabalhava antes mesmo da queda quando ainda desconhecia qualquer maldição de Deus e não relacionam o trabalho com as consequências pecaminosas da queda. A teologia protestante relaciona com a queda de Adão apenas os sofrimentos oriundos do trabalho após a queda como afirma Gênesis 3. No protestantismo reformado o trabalho é considerado uma benção do Senhor. Esta visão aliada com um estilo de vida simples, sem ostentação, ascético, produz poupança o que pode ter fomentado o surgimento do capital naqueles países, mas a poupança protestante não pode ser considerada a única variável responsável pela produção de fenômeno tão complexo.
Esta cosmovisão desenvolveu nos povos de cultura protestante uma certa propensão para o desenvolvimento do comércio e da indústria, conforme bem prefigurou Laveleye (1951), e demonstrou Gomes, (2000), numa pesquisa sobre as contribuições do Mackenzie College para a formação da mentalidade do empresariado em São Paulo. Neste caso, as conclusões desta pesquisa demonstram que algumas das categorias protestantes presbiterianas, e especialmente da cultura norte - americana, apontadas acima, contribuíram significativamente para a formação do empresariado industrial de São Paulo de 1870 a 1914.
Outro fator importante na cosmovisão protestante se refere a riqueza. No catolicismo existe uma certa glorificação da pobreza numa radicalização dos ensinos evangélicos de que só os pobres herdarão o reino de Deus. O católico costuma ver a riqueza com desconfiança e projeta esta desconfiança naquele que acumulou bens nesta vida, pois o mesmo encontra-se excluído do reino de Deus. No protestantismo, ao contrário, a riqueza advinda do trabalho e da poupança é considerada como um sinal da benção do Senhor. É acúmulo de bens é altamente valorizado. Quanto a relação de católicos e protestantes com o lucro é um aspecto que exige uma discussão mais complexa que ficará de fora deste artigo por falta de espaço e poderá ser abordada posteriormente posto que esta pesquisa pretende focalizar apenas a ética do trabalho e suas relações com o pensamento calviniano.
Bibliografia
BIÉLER. André. O pensamento econômico e social de Calvino. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1990.CALVINO, Juan. Institución de la religion cristiana. Traducida y publicada por Cipriano de Valera en 1597. Nueva edicion revisada en 1967. Países Bajos: Fundacion Editorial de Literatura Reformada, 1967. Vol I e II.
IRWIN, C. H. Juan Calvino, sua vida y sua obra. México: Casa unida de Publicaciones, 1947.
JAMES, William. As variedades da experiência religiosa. Um estudo sobre a natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1991.
JASPERS, Karl. Método e visão de mundo em Weber. In COHN, Gabriel. Sociologia para ler os clássicos. Rio de Janeiro; São Paulo: Livros Técnicos e Científicos, 1977.
LAVELEYE. Emílio. Do futuro dos povos católicos. Estudo de economia social. São Paulo: Casa editora Presbiteriana, 1951.
LESSA, Vicente da Cruz Themudo. Calvino, 1509-1564: sua vida, sua obra. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, s.d.
LUTERO. Martin. A los magistrados de todas las ciudades alemanas para que Construyan y mantengan escuelas cristianas (1523).
NIEBUHR, H. R. Cristo e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
__________. As Origens Sociais das Denominações Cristãs. São Paulo: ASTE,1992.
PRADESS, J. A. La sociologie de la religion chez Max Weber. Louvain: Nauwerlaerts; Paris: Nauwerlaerts, 1966.
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5. Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982.
_________. Conceitos básicos de Sociologia. São Paulo: Moraes, 1987.
Referências bibliográficas
[2] WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1982. Diz ele: “Na verdade, uma Igreja é uma corporação que organiza a graça e administra os dons religiosos da graça, como uma fundação. A filiação a uma Igreja é, em princípio, obrigatória e, portanto, nada prova quanto às qualidades dos membros. A seita é, porém, uma associação voluntária apenas daqueles que, segundo o princípio, são religiosa e moralmente qualificados. Quem encontra a recepção voluntária da sua participação, em virtude da aprovação religiosa, ingressa na seita voluntariamente” (Weber, 1982. p. 351).
[3] Pragmatismo deriva de uma palavra grega que significa ação. O método pragmático é um método que tenta interpretar cada noção, traçando as suas consequências práticas respectivas. O pragmatismo é diferente do racionalismo e não visa resultados particulares, somente atitude de orientação. (James, 1989).
[4] Gênesis 2.1-25.
[5] Gênesis 3.1-24.
* Rev. Antônio Maspoli é doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, foi Diretor da Escola Superior de Teologia e autor do artigo sob título O pensamento de João Calvino e a ética protestante de Max Weber, aproximações e contrastes, do qual a presente postagem é parte. Disponível em: https://pt.linkedin.com/pulse/o-pensamento-de-jo%C3%A3o-calvino-e-%C3%A9tica-protestante-max-weber-maspoli.
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