João Calvino *
INTRODUÇÃO
Daquelas matérias discutidas até aqui, vemos claramente quão destituído e vazio de todas as coisas é o homem, e como lhe faltam todos os auxílios para a salvação. Portanto, se buscar recursos para socorrê-lo em sua necessidade, é preciso buscá-los fora dele, obtendo-os, portanto, em outra fonte.
Anteriormente, foi-lhe explicado que o Senhor, de bom grado e livremente, se revela a nós em seu Cristo. Pois em Cristo ele oferece toda a felicidade no lugar de nossa miséria, toda a riqueza no lugar de nossa carência: nele, o Senhor nos abre os tesouros celestiais, para que toda a nossa fé contemple aquele seu Filho amado, toda a nossa expectativa depende dele e toda a nossa esperança adere a ele e nele repousa. Na verdade, trata-se daquela filosofia secreta e oculta que não pode ser apreendida por meio de silogismos. Mas aqueles cujos olhos Deus abriu seguramente aprendem com o coração que, em sua luz, podem visualizar a luz (Salmos 36.9). Mas, depois de havermos sido instruídos, mediante a fé, a reconhecer que tudo aquilo de que necessitamos e que nos falta está em Deus e em nosso Senhor Jesus Cristo, em quem o Pai quis que residisse toda a plenitude de sua generosidade (Colossenses 1.19; João 1.16), de modo a podermos extrair tudo dali, como de uma fonte que jorra, resta-nos buscar nele e em oração rogar-lhe que nos dê o que temos aprendido estar nele.
De outro modo, conhecer a Deus como o Senhor e outorgante de todas as coisas boas, convidando-nos a buscá-las nele, e, ainda assim, não irmos até ele para tudo buscar, isso seria de pouco proveito, tal como um homem negligenciar um tesouro, sepultado e escondido na terra, após o mesmo lhe ser indicado. Por isso devemos discutir mais plenamente esse último ponto, já que previamente só foi mencionado de passagem e, por assim dizer, superficialmente abordado.
REGRAS DA ORAÇÃO
Ora, que esta seja a primeira norma da oração correta: que abandonemos todo pensamento de nossa glória pessoal; que nos desvencilhemos de toda noção de nossa dignidade pessoal; que expulsemos toda a nossa autossegurança; que rendamos glória ao Senhor em nosso abjeto estado e em nossa profunda humildade; que nos deixemos admoestar pelo ensino profético: “não lançamos nossas súplicas perante a tua face fiados em nossas justiças, mas em tuas muitas misericórdias. Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atende-nos e age; não te retardes, por amor de ti mesmo, ó Deus meu; porque a tua cidade e o teu povo são chamados pelo teu nome” (Daniel 9.18-19). Outros profetas escreveram: “mas é a alma em extremo aflita, que caminha encurvada e debilitada; é o olhar vacilante e a alma esfomeada que te darão glória e justiça, ó Senhor! Por isso, não é apoiando-nos nas obras de justiça dos nossos pais e dos nossos reis que depomos nossa súplica diante da tua face, Senhor nosso Deus” (Baruque 2.18-19). “Escuta, Senhor, e tem compaixão, pois pecamos contra ti” (Baruque 3.2).
Que esta seja a segunda norma: sentir verdadeiramente nossa insuficiência pessoal e ponderar com sinceridade que necessitamos das coisas que buscamos em Deus para nós mesmos e para nosso benefício, e que as buscamos a fim de as obtermos dele. Pois, se tivéssemos outra intenção em mente, nossa oração seria forjada e impura. Se alguém fosse pedir a Deus o perdão dos pecados, sem se reconhecer seguro e ardorosamente como pecador, com sua pretensão nada mais estaria fazendo do que motejar de Deus. Então, busquemos com profundo, ardente e sincero desejo aquelas coisas que buscamos somente para a glória de Deus. Quando, por exemplo, oramos para que “seu nome seja santificado” (Mateus 6.9; Lucas 11.2), devemos, por assim dizer, ter profunda fome e sede por essa santificação. Se, pois, reconhecermos que somos premidos e sobrecarregados pelo peso dos pecados, se nos virmos vazios de todas as coisas que poderiam fazer-nos agradáveis diante de Deus, que tal sentimento não nos terrifique, mas, antes, recorramos a ele, visto que nos é necessário ponderar e sentir tais coisas quando nos aproximarmos dele (Lucas 17.7-10). Pois a oração não foi ordenada para nos estufarmos arrogantemente diante de Deus, ou estimarmos excessivamente tudo o que é nosso, mas, com isso, devemos confessar nossas calamidades e prantear por elas diante dele, como filhos que intimamente levam seus pesados problemas a seus pais. Ao contrário, esse senso de pecado deveria ser para nós como um acicate ou aguilhão a nos despertar ainda mais à oração.
PEDINDO E RECEBENDO
E nosso boníssimo Pai acrescenta a essa consciência de nossa necessidade duas coisas com as quais ele nos impele com extrema veemência para que recorramos intensamente à oração: um mandamento que nos impele a orar; e uma promessa que nos assegura que receberemos tudo o que pedirmos. Temos esse mandamento reiterado com muita frequência: “Buscai”, “vinde a mim”, “pedi-me”, “voltai para mim”, “invocai-me no dia da necessidade”. E isso é expresso com frequência em outro lugar, como também se dá no terceiro capítulo da lei, o qual nos proíbe de tomar em vão o nome do Senhor (Lucas 11.9-13; João 16.23-29; Mateus 7.7; 11.28; Zacarias 1.3; Salmos 50.15; Êxodo 20.7). Pois, ao sermos proibidos de tomar seu nome em vão, ao mesmo tempo somos instados a que o tenhamos em glória, deferindo-lhe todo crédito pela virtude, pelo bem, pelo auxílio e pela proteção, enquanto rogamos e aguardamos da parte dele essas mesmas coisas.
Portanto, a menos que fujamos para ele quando alguma necessidade nos pressiona, a menos que o busquemos e supliquemos seu auxílio, seguramente evocamos sua ira sobre nós, justamente como se estivéssemos engendrando deuses para nós ou fabricando ídolos. Na verdade, ao menosprezarmos todos os seus mandamentos, estamos precisamente desprezando sua vontade. Em contrapartida, os que o invocam, que o buscam e que lhe rendem louvor também desfrutam de grande conforto, porque bem sabem que assim estão rendendo-lhe algo aceitável e servindo à sua vontade. A promessa é “buscai e achareis” (Mateus 7.7; cf. Jeremias 29.13-14); “e será assim convosco” (Marcos 11.24); “eu vos responderei” (Isaías 65.24); “eu te livrarei” (Salmos 5.15; 91); “eu vos aliviarei” (Mateus 11.28); “eu mesmo apascentarei minhas ovelhas, as farei repousar” (Ezequiel 34.14-16); “não sereis envergonhados” (Isaías 45.17).
Todas essas coisas, como nos foram prometidas por Deus, sem dúvida se cumprirão, se as aguardarmos com fé inabalável. Pois a oração não tem nenhum mérito ou dignidade para obter o que é solicitado, mas toda a esperança da oração repousa nessas promessas e depende delas. Portanto, em nossas orações, devemos crer que teremos a resposta, precisamente como Pedro ou Paulo, ou qualquer outro santo, foram atendidos (como se estivessem equipados com maior santidade de vida do que nós), contanto que invoquemos a Deus com a mesma fé igualmente sólida. Quando formos equipados e armados com a mesma ordem de orar e com a mesma promessa de que a oração terá resposta, Deus julga o valor da oração não pela dignidade pessoal, mas unicamente pela fé, na qual os homens obedecem ao seu mandamento e confiam em sua promessa, respectivamente. Em contrapartida, os que não estão seguros da promessa de Deus e põem sua verdade em xeque, duvidando se realmente serão atendidos, invocam o mesmo Deus e nada recebem (no dizer de Tiago). Então, visto que o Senhor afirma que sucederá a cada um em conformidade com sua fé, segue-se que nada pode suceder-nos à parte da fé (Mateus 8.13; 9.29; Marcos 11.24). Uma vez que ninguém é digno de se apresentar a Deus e chegar-se à sua presença, o próprio Pai celestial, a fim de nos livrar dessa confusão (a qual lançaria o coração de todos nós em desespero), nos deu seu Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor, para ser nosso Advogado (1 João 2.1) e Mediador junto a ele (1 Timóteo 2.5; cf. Hebreus 8.6 e 9.15). Mediante sua diretriz, podemos achegar-nos a ele com confiança e, com esse Intercessor, confiar que nada do que pedirmos em seu nome nos será negado, como nada poderá ser-lhe negado pelo Pai. Da mesma forma, o trono de Deus não é apenas um trono de majestade, mas também de graça, diante do qual, em seu nome, ousamos comparecer com toda a confiança, receber mercê e encontrar graça no tempo oportuno (Hebreus 4.16).
EM NOME DE CRISTO
E, como foi estabelecida uma norma para se invocar a Deus, e dada uma promessa de que todos os que o invocam serão ouvidos, assim também somos particularmente instados a invocá-lo em nome de Cristo, e temos sua promessa de que obteremos o que pedirmos em seu nome (João 14.13; 16.24). Assim, é incontroversa a clareza de que os que invocam a Deus em outro nome, que não seja o de Cristo, zombam obstinadamente de seus mandamentos e reputam sua vontade como nada – de fato, não possuem nenhuma promessa de que receberão algo. Aliás, como Paulo diz, “todas as promessas de Deus encontram em Cristo seu sim e o amém” (2 Coríntios 1.20). Ou seja, são confirmadas e cumpridas. Ora, uma vez que ele é o único caminho, e o único acesso pelo qual nos é concedido ir a Deus (cf. João 14.6), aos que se desviam dessa rota e abandonam esse acesso, então já não resta nenhum caminho e nenhum acesso rumo a Deus; nada lhes resta em seu trono senão ira, juízo e terror. Além do mais, uma vez que o Pai o designou (cf. João 6.27) como nossa Cabeça (Mateus 2.6) e Líder (1 Coríntios 11.3; Efésios 1.22; 4.15; 5.23), os que, de algum modo, se desvencilham ou se desviam dele estão tentando apagar e desfigurar a marca impressa por Deus.
PETIÇÃO E AÇÃO DE GRAÇAS
Na oração, há duas partes (como agora entendemos esse termo): petição e ação de graças. Pela petição, depositamos os desejos de nosso coração diante de Deus, buscando sua bondade, antes de tudo, somente o que serve à sua glória; segundo, o que também é conducente ao nosso uso (1 Timóteo 2.1). Pela ação de graças, reconhecemos seus benefícios para conosco e os confessamos com louvor, referindo à sua bondade todas as boas coisas, quaisquer que sejam. Uma e outra estão compreendidas em um versículo de Davi, quando, na pessoa de Deus, escreve assim: “invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me glorificarás” (Salmos 50.15).
Devemos fazer uso constante de ambas (cf. Lucas 18.1; 21.36; Efésios 5.20), pois nossa indigência é tão grande, e as grandes ansiedades nos compelem e nos comprimem tanto de todos os lados, que isso será motivo para todos, até mesmo para os mais santos, gemerem e suspirarem continuamente diante de Deus, e de implorar como súplices. Em suma, somos quase esmagados por tão grande e generoso eflúvio das benesses de Deus, por seus incontáveis e poderosos milagres, tanto que, para onde olhamos, deparamos com elas; assim, jamais deixemos de ter motivo e matéria de louvores e ações de graças. E expliquemos essas coisas um tanto mais claramente, uma vez que (como já se provou sobejamente) toda a nossa esperança e toda a nossa riqueza de tal modo residem em Deus que nem nós nem todas as nossas possessões podem prosperar, a não ser pela intervenção de sua bênção; devemos confiar constantemente a nós e tudo o temos a ele (cf. Tiago 4.14-15). Então, tudo o que determinarmos, falarmos e fizermos, determinemos, falemos e façamos sob sua mão e vontade – numa palavra, sob a esperança de seu auxílio. Pois, pela boca de Deus, são declarados malditos todos os que, depositando confiança em si mesmos ou em algum outro, concebem e realizam seus planos e empreendem ou tentam começar algo à parte de sua vontade e sem invocá-lo (cf. 30.1; 31.1).
Visto, porém, que foi dito que ele deve ser reconhecido como o Autor de todas as benesses, segue-se que devemos de tal modo receber todas as coisas de sua mão que as acompanhemos com contínua ação de graças; e que não há maneira própria de fazermos uso de suas benesses, as quais fluem e nos vêm incessantemente de sua generosidade, senão reconhecendo-as com louvor e por elas rendendo constantes ações de graças. Porquanto Paulo, quando testifica que essas benesses “são santificadas pela palavra... e a oração” (1 Timóteo 4.5), ao mesmo tempo sugere que, sem a palavra e a oração, de modo algum são santificadas. (Evidentemente, ele subentende “palavra”, pelo uso de metonímia, como “fé”.)
ORAÇÃO PÚBLICA
A razão pela qual Paulo, em outro lugar, nos incita a orar sem cessar (1 Tessalonicenses 5.17-18; cf. 1 Timóteo 2.1, 8) é que ele quer que todos os homens elevem a Deus seus desejos, em todo o tempo, em todos os lugares e em todos os afazeres; que esperem dele todas as coisas e lhe rendam louvor por todas as coisas, visto que ele nos oferece razões inexauríveis para louvar e orar. Essa constância na oração se ocupa daquelas orações que alguém faz privativamente, mas que nada tem a ver com as orações públicas da Igreja. Estas não podem ser constantes, nem devem ser feitas de qualquer outra maneira senão em conformidade com a determinação e o consenso de todos. Por essa razão, devem-se determinar e designar certas horas, indiferentes para Deus, porém necessárias para a conveniência dos homens, buscando a acomodação de todos e para que tudo seja feito na Igreja “com decência e ordem”, em conformidade com a declaração de Paulo (1 Coríntios 14.40).
Essa é a razão pela qual se designaram lugares aos quais chamamos “templos”, não porque em virtude de algum santo segredo as orações sejam mais santificadas ou mais adequadas para serem ouvidas por Deus, mas porque a congregação dos fiéis tem mais comodidade quando se congrega em harmonia para orar, para ouvir a pregação da Palavra e para receber os sacramentos. Em contrapartida (no dizer de Paulo), nós somos os verdadeiros templos de Deus (1 Coríntios 3.16; 6.19; 2 Coríntios 6.16). Aqueles dentre nós que porventura desejam orar no templo de Deus, que orem em seu íntimo. Mas os que presumem que é no templo que o ouvido de Deus se achega bem mais perto deles, ou consideram sua oração mais santa pela santidade do lugar, dessa maneira estão agindo com a mesma estupidez dos judeus e gentios. Ao adorarem a Deus fisicamente, vão contra o que está determinado, a saber, que, sem qualquer consideração de lugar, adoramos a Deus em espírito e em verdade (João 4.23).
ORAÇÃO COMO AFETO INTERIOR
Mas, até onde essa meta da oração já foi delineada – a saber, que os corações devem ser despertados e conduzidos a Deus, tanto para louvá-lo como para suplicar seu auxílio –, entendamos que a essência da oração está posta na mente e no coração; ou melhor, que a oração em si é propriamente uma emoção interior do coração, a qual é derramada e depositada diante de Deus, aquele que sonda os corações (cf. Romanos 8.27). Por conseguinte, Cristo, nosso Senhor, quando quis estabelecer uma melhor regra para a oração, mandou-nos entrar em nosso quarto e ali, a portas fechadas, orar ao nosso Pai em secreto, para que o Pai, que está em secreto, nos ouça (Mateus 6.6). Pois, quando nos apartou do exemplo dos hipócritas, que buscam assenhorear-se do favor dos homens com vãs e ostensivas orações, ao mesmo tempo ele acresce algo superior: entrarmos em nosso quarto e ali, a portas fechadas, orarmos. Com essas palavras, como as entendo, ele nos ensinou a descer e adentrar nosso coração com toda a nossa reflexão. Ele promete que Deus, cujos templos devem ser nossos corpos, estará junto a nós, nos afetos de nossos corações (cf. 2 Coríntios 6.16). Pois ele não pretendia negar ser próprio orar em outros lugares, mas mostra que a oração é algo secreto, que está principalmente alojado no coração e que requer tranquilidade, longe de todas as nossas numerosas preocupações.
Além disso, é evidente que, a menos que a voz e o canto, uma vez interpostos na oração, fluam do sentimento mais recôndito do coração, não têm o mínimo valor ou proveito junto a Deus. Mas eles incitam sua ira contra nós caso fluam apenas do exterior dos lábios e da garganta, uma vez que isso seria abusar de seu santíssimo nome e manter sua majestade em desdém, como declara através do profeta: “Visto que esse povo se aproxima de mim e, com sua boca e com seus lábios, me honra, mas seu coração está longe de mim, e seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu, continuarei a fazer obra maravilhosa no meio deste povo; sim, obra maravilhosa e um portento; de maneira que a sabedoria de seus sábios perecerá, e a prudência de seus prudentes se esconderá” (Isaías 29.13-14; cf. Mateus 15.8-9).
O LOUVOR
Todavia, aqui não condenamos o falar e o cantar, contanto que sejam associados ao afeto do coração e sirvam a ele. Pois assim exercitam a mente em ponderar sobre Deus e mantê-la atenta, a qual (em razão de ser insegura) facilmente relaxa e se desvia em direções distintas. Além do mais, visto que a glória de Deus deve, em certa medida, brilhar nas diversas partes de nossos corpos, é especialmente oportuno que a língua seja designada e destinada a essa tarefa, seja através do cantar, seja através do falar. Pois ela foi expressamente criada para transmitir e proclamar o louvor de Deus. Mas o principal uso da língua é nas orações públicas, as quais são oferecidas na assembleia dos crentes, por meio da qual se concretiza isso a uma só voz e, por assim dizer, com a mesma boca, para que todos nós glorifiquemos a Deus juntos, adorando-o com um só espírito e a mesma fé. E fazemos isso abertamente, para que todos os homens, de forma alternada, recebam cada qual de seu irmão a confissão de sua fé e sejam impelidos por seu exemplo.
ORAÇÕES EM OUTRO IDIOMA
Disso, também transparece claramente que as orações públicas devem ser pronunciadas não em grego entre os latinos, nem em latim entre os franceses e ingleses (como, até então, tem sido o costume), mas no idioma do povo, para que, em geral, seja entendida por toda a assembleia. Pois isso deve ser feito para a edificação de toda a Igreja, a qual não recebe nenhum benefício de um som não discernido. Os que não levam em conta o amor, devem ao menos deixar-se sensibilizar pela autoridade de Paulo, cujas palavras são perfeitamente claras. “E, se tu bendisseres apenas em espírito, como dirá o indouto o amém depois de tua ação de graças? Visto que não entende o que dizes; por que tu, de fato, dás bem as graças, mas o outro não é edificado” (1 Coríntios 14.16-17). Na oração, seja pública, seja em privado – como devemos manter explicitamente –, a língua sem o coração é inaceitável a Deus. Além do mais, o que a mente pondera deve ser de tamanha magnitude e tamanho ardor que a expressão exceda em muito aquilo que a língua pode expressar. Finalmente, a língua nem mesmo é necessária para a oração privativa: o sentimento íntimo deveria bastar para se incitar, de modo que, algumas vezes, as melhores orações são as silenciosas. Como exemplo, é possível ver isso nas orações de Moisés (Êxodo 14) e de Ana (1 Samuel 1.13).
A FORMA DA ORAÇÃO
Ora, devemos aprender não só um método mais definido de oração, mas também a própria forma: ou seja, aquilo que o Pai celestial nos tem ensinado através de seu amado Filho (Mateus 6.9; Lucas 11.2), no qual podemos reconhecer a ilimitada bondade e clemência. Pois ele nos adverte e nos insta a buscá-lo em cada uma de nossas necessidades (como filhos que costumam buscar refúgio na proteção dos pais). Além disso, uma vez que ele viu que nem percebemos suficientemente a que aperturas nossa pobreza conduz, o que era justo pedir e também o que nos era proveitoso, fez também provisão para essa ignorância de nossa parte; e o que estava faltando à nossa capacidade, ele mesmo supriu e fez de si o que nos era suficiente. Pois ele compôs para nós uma forma em que apresenta como num sumário tudo o que nos permite buscar da parte dele, tudo o que nos é benéfico, tudo o que necessitamos pedir. Dessa sua bondade, recebemos um grande fruto de consolação: que saibamos que não estamos pedindo nenhum absurdo, nada estranho ou inconveniente – em suma, nada que ele não aceite –, uma vez que estamos pedindo quase em suas próprias palavras.
Essa forma ou regra de oração consiste de seis petições. A razão pela qual não concordo com os que distinguem sete tópicos é que, em Lucas 11.2-4, são lidas somente seis; obviamente, ele não teria deixado a oração numa forma defectiva, de modo que o que foi adicionado em sétimo lugar em Mateus deve ser referido, exegeticamente, à sexta posição. Mas, ainda que em todas essas (petições), deva-se conferir à glória de Deus o principal lugar, e, em contrapartida, mesmo que todas elas visem ao nosso bem, e é conveniente que se apresentem como pedimos, as três primeiras petições foram destinadas particularmente à glória de Deus. E é justamente isso que devemos buscar nelas, sem levar em conta nosso próprio proveito, como se costuma dizer. As outras três dizem respeito ao cuidado de nós mesmos, e são especialmente destinadas àquelas coisas que devemos pedir em nosso próprio proveito. Assim, quando pedimos que o nome de Deus seja santificado, não devemos levar em conta nosso proveito pessoal, mas tão somente pôr diante de nós sua glória, olhar atentamente para essa única coisa. E, em petições desse tipo, devemos deixar-nos afetar precisamente da mesma maneira.
E, sem dúvida, isso resulta em grande vantagem para nós, porque, quando seu nome é santificado como pedimos, também se efetua nossa própria santificação. Mas nossos olhos devem, por assim dizer, estar cegos para esse tipo de vantagem, para que, removida toda esperança de nosso bem privado, essa santificação do nome de Deus, e outras coisas que pertencem à sua glória, não deixem de ser desejadas e pedidas em nossas orações, como se vê nos exemplos de Moisés e de Paulo (Êxodo 32.32; Romanos 9.3), os quais, afastando de si suas mentes e seus olhos, com zelo ardente e intenso, estavam dispostos a buscar sua própria destruição, a fim de que, a despeito de sua própria perda, a glória e o reino de Deus fossem promovidos. Em contrapartida, quando pedimos que nos seja dado o pão diário, ainda que desejemos o que visa à nossa própria vantagem, aqui também devemos buscar a glória de Deus, para que nada peçamos senão o que redunde nessa glória.
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* Texto extraído de: CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. São José dos Campos/SP: Fiel, 2018.
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