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✢ CALVINO ANTES DO CALVINISMO
Zwinglio M. Dias *
“Toda a história moderna ocidental teria sido irreconhecivelmente distinta sem a perpétua influência de Calvino.” — J. T. McNeill
“Não é de todo fantasioso dizer que, em um palco menor mas com armas não menos formidáveis, Calvino fez pela bourgeoisie do século XVI o que Marx fez pelo proletariado do século XIX...” — R. H. Tawney
Introdução: alguns apontamentos sobre João Calvino antes do Calvinismo
Dizem que Karl Marx, ao ler um texto de apresentação do que se reputava como marxismo, ficou muito frustrado e declarou que se aquilo fosse marxismo ele não seria jamais marxista! Esta anedota ilustra muito bem o fato de que quase sempre os seguidores ou reduzem ou vão além daquele a quem dizem seguir ou representar. Eu penso que Calvino dificilmente se identificaria completamente com a maioria dos “calvinistas”, incluindo aqueles das primeiras horas, seja porque tenham tergiversado aspectos importantes de seu pensamento ou de suas propostas, seja porque não tenham entendido com clareza detalhes significativos de sua percepção global.
Além disso, é importante sublinhar que as rápidas mudanças históricas, ocorridas através da introdução de novos conceitos teológicos e seus resultados práticos na reestruturação social da igreja e da sociedade genebrina, foram transformando muito rapidamente a conjuntura socioeconômica e política daquela cidade-estado. E isto demandava um esforço permanente de ajuste dos conceitos ou, caso se prefira, de uma permanente hermenêutica da realidade à luz da Palavra de Deus. É isso o que explica a contínua revisão de seu texto teológico fundamental, As Institutas, que alcançou cinco diferentes edições, como a busca continuada de interpretação das Escrituras por meio dos comentários bíblicos e sua exposição pública semanal. A Venèrable Compagnie des Pasteurs, mais os leigos interessados, se reuniam a cada sexta-feira para os chamados “Colóquios” de Genebra, ainda que sua exata designação fosse: “Les Congregations”. Dado que um elemento central da teologia de Calvino era o exercício da fé, pessoal e explícita, com sua incidência em todas as dimensões da vida cotidiana, isto implicava a discussão permanente, a partir do texto bíblico, de questões de ordem política, econômica, social e pessoal, que envolviam a vida dos cidadãos genebrinos. Em outras palavras, o exercício daquilo que, em termos atuais, chamamos de análise periódica do desenvolvimento da conjuntura socioeconômica e política para avaliar a situação, detectar comportamentos desviantes, no plano concreto da vida, e corrigir o rumo do testemunho da comunidade de fiéis sob a luz da palavra.
Os tempos eram muito difíceis. Havia perseguição, a raiz dos conflitos político-religiosos, por todos os lados. Roma era, todavia, bastante forte e ainda dispunha de muito poder. Genebra se transformou, rapidamente, em uma cidade-refúgio para protestantes, humanistas e descontentes com as políticas dos governos regionais e centrais aliadas da igreja romana. Calvino mesmo era um refugiado. Foi, pois, em meio a essa situação de inquietude, de incerteza, de ausência de paz e tranquilidade, ou seja, em uma situação limite, onde tudo estava por ser feito, que Calvino empregou seu gênio organizativo e normativo, revelando-se um grande condutor do povo. Organizou e dirigiu a comunidade reformada de Genebra durante 23 anos, até sua morte precoce, e somente pôde gozar de certa paz e tranquilidade nos últimos dez anos de sua vida. Ao ler seus textos e conhecer suas, muitas vezes, discutíveis decisões, há que se levar em alta conta o fundo sobre o qual ele tinha que se mover. Com isso não queremos desculpá-lo por seus exageros e equívocos, mas chamar a atenção para o fato de que estamos diante de um homem em luta permanente, cercado de inimigos e em plena batalha.
Calvino como teólogo
É incrível pensar que foi em meio a uma situação tão cambiante e confusa que este jovem cristão desenvolveu um pensamento ordenado e claro acerca do que deveria ser a sociedade e, nela, a igreja. Assim, num tempo de transformações profundas que tocavam todas as dimensões da experiência humana, o movimento conduzido por este jovem francês de frágil aparência consolidou algumas conquistas teológicas que tiveram um enorme impacto no desenvolvimento de todo o protestantismo posterior, dando forma a um ethos e a uma visão de sociedade humana que ressoam até nossos dias e deixando marcas indeléveis em muitas culturas.
Como já assinalamos anteriormente, o Deus de Calvino é o “Totalmente Outro”, distinto e impossível de ser apreendido pelos seres humanos. Criador de tudo o que existe é radicalmente distinto e separado de suas obras, de sorte que somente por sua decisão soberana suas criaturas lhe podem ter acesso. É um Deus que se revela atuando, movendo-se dinamicamente ao interior de sua criação. Se vamos a Ele é porque Ele veio primeiro a nós. Portanto, é Ele mesmo quem provoca e suscita em nossa experiência a percepção e o sentimento de sua presença no mundo. Sozinhos, os seres humanos não têm condições de aproximar-se dele e acolher sua glória, ainda que Ele tenha deixado vestígios ou sinais de sua presença em tudo aquilo que fez. Mas, os seres humanos não o podem reconhecer até que Ele mesmo se lhes revele. Como disse o mesmo Calvino (IRC, I, V.1):
“É verdade que sua essência é incompreensível, de tal sorte que sua deidade transcende todo sentimento humano; mas Ele inscreveu em cada uma de suas obras certas notas e sinais de sua glória tão claros e tão excelsos, que ninguém, por mais ignorante e rude que seja, pode pretender ignorá-la.”
Baseado em seu profundo conhecimento da literatura e da filosofia clássica, assim como do conteúdo das Escrituras, Calvino vai dar ênfase no caráter misericordioso, clemente e justo de Deus que se revela a Israel, e, depois, de modo muito significativo e exemplar, na pessoa de Jesus Cristo. Por sua clemência e misericórdia ele se torna pequeno, se acomoda, se adapta aos limites da criatura, para assumir a condição humana no homem Jesus que se torna, então, a revelação plena de sua glória e verdade. Daí que, por causa de nossas limitações de criaturas, só podemos vislumbrar o que Deus é, de fato, na pessoa de Jesus Cristo. E isto sob a unção do Espírito e a graça do Pai. Aqui Calvino faz eco às formulações de Agostinho que, por sua vez, ressoa a compreensão eclesiológica de Paulo.
Esta perspectiva acerca da soberania de Deus que se revela ao mundo e aos seres humanos o faz colocar a majestade e a glória divinas como o centro da vida dos humanos. Sua intenção era destacar a fragilidade e os limites da condição humana, condenar a auto-centralização de cada indivíduo e sua hybris, e, além disso, prover-lhe um espaço para sua regeneração enquanto criatura de Deus. Como apontou Tawney (1971, p. 114):
“...a redenção... é obra não do mesmo homem, que em nada pode contribuir para ela, mas de um Poder objetivo. O esforço humano, as instituições sociais, o mundo da cultura, na melhor das hipóteses, são irrelevantes para a salvação, e, na pior, perniciosos. Apartam o homem da verdadeira meta de sua existência e fomentam a confiança em quem não a merece.”
Daí que a igreja, ou a comunidade dos servidores de Deus, seja por ele entendida como a reunião daqueles e daquelas que amam a Deus acima de todas as coisas e, por isso, são capazes de retirar os olhos de cima de si mesmos e, olhando para Deus, ver, sentir e servir a seus semelhantes. O desenvolvimento da vita christiana é o grande objetivo de Calvino como teólogo e reconstrutor da igreja. Para isso ele se voltou à Escritura e à vivência da comunidade cristã em seus primeiros momentos. Fundamentado na experiência e na reflexão dos Pais da igreja, especialmente Agostinho e Crisóstomo, vai rechaçar e contradizer a especulação filosófica de corte aristotélico que desde o século XIII dominava a teologia romana a partir da obra de Tomás de Aquino. Nunca percebeu a reflexão teológica como ciência abstrata (scientia), mas como conhecimento da fé, sabedoria (sapiencia), que somente pode aflorar do trato direto com a Escritura. Este modo de ler e interpretar os textos, com sua consequente reflexão aplicada à situação concreta de seus dias, vai marcar a experiência eclesiológica da comunidade genebrina durante sua vida. O que se segue será outra coisa.
Calvino como pastor
Para Calvino, a igreja é um dos resultados da ação do Espírito de Deus no mundo. Ela é formada por aqueles e aquelas que se têm rendido à proposta de Jesus de Nazaré, ou seja, por aqueles que aceitaram, pela fé, a graça de Deus oferecida na vida, morte e ressurreição de Jesus. Como expressão da fé dos “constrangidos por Cristo”, a igreja se constitui num momento segundo da aventura da fé, pois é a reunião daqueles que já “estão em Cristo”, para fazer memória aqui da expressão de Paulo. Porque a igreja é um dos instrumentos de Deus para o testemunho dos valores do Reino de Cristo, Calvino vai prestar muita atenção e gastar grande parte do seu esforço para defini-la, organizá-la e mantê-la dentro dos padrões que lhe pareciam os mais consoantes com a compreensão de Paulo. Vai dedicar 19 dos 20 capítulos do livro IV das “Institutas” para expor com precisão e amplitude seu pensamento.
Ele estava de acordo com a distinção, estabelecida anteriormente por Ulrich Zwínglio, entre a igreja dos cristãos concretos, históricos, e a “verdadeira esposa de Cristo”, “cujo número de membros está vedado aos olhos humanos.” Estes dois sentidos de igreja são muito caros a Calvino. Um se refere à igreja que os seres humanos podem ver, sentir, se alegrar ou sofrer com ela. O outro é a igreja que só Deus conhece, que só Deus vê. Sobre isto escreve ele (IRC, IV, I.10):
“Nesta igreja estão mesclados os bons e os hipócritas, que não têm de Cristo outra coisa senão o nome e a aparência; uns são ambiciosos, avarentos, invejosos, fofoqueiros; outros de vida dissoluta, que são suportados somente por algum tempo, porque, ou não se pode lhes convencer juridicamente, ou porque a disciplina não tem sempre o vigor que deveria. Assim, pois, da mesma maneira que estamos obrigados a crer na Igreja, invisível para nós e conhecida somente para Deus, assim também se nos manda que honremos esta igreja visível e que nos mantenhamos em sua comunhão.”
É bem conhecida a formulação oferecida pelo Reformador (IRC, IV, I.9) para a identificação histórica da igreja e que insistimos em reproduzir:
“Eis como conheceremos a igreja visível: onde quer que vejamos pregada sinceramente a Palavra de Deus e administrados os Sacramentos conforme à instituição de Jesus Cristo, não duvidemos que há ali a Igreja; pois sua promessa não nos pode falhar: ‘Onde estiverem dois ou três congregados em meu nome, ali estou eu no meio deles’ (Mt 18.20)”.
Nesta definição, Calvino destaca como marca fundamental da comunidade dos seguidores de Jesus a pregação do Evangelho e a celebração dos Sacramentos. Para ele, estes dois acontecimentos não podem estar separados. Se a Pregação é a Palavra viva de Deus sendo dinamizada na vida da comunidade pelo testemunho interno do Espírito Santo, e não simplesmente as palavras escritas em um livro sagrado, a Eucaristia completaria o anúncio do Evangelho. Por isso ele insistia que a Eucaristia devia ser celebrada pelo menos uma vez por semana, acompanhada da pregação do Evangelho. Mas, neste particular, ele não teve como impor-se nem em Genebra, onde terminou por se estabelecer, contra sua vontade, a celebração eucarística uma vez ao mês.
Isso tem a ver com o costume romano estabelecido de celebrar a eucaristia para o povo uma vez ao ano. E isso foi assim por séculos, havendo se arraigado profundamente no imaginário popular. Ulrich Zwínglio encontrou uma solução intermediária estabelecendo a celebração quatro vezes ao ano. Calvino não se contentou com isso, pois lhe parecia que assim o sermão se tornaria o centro da liturgia, e ele buscava justamente restabelecer o equilíbrio que se havia perdido com a prática romana. Mas foi, não obstante seus intentos, vencido pelo costume do povo.
Como pastor, Calvino foi, sobretudo, mestre e educador, demonstrando uma enorme preocupação com a formação de seus párocos. Assim, o ensino foi um marco muito significativo em seu ministério, ao ponto de exigir do governo civil da cidade a criação de escolas, sendo responsável pelo estabelecimento da primeira escola gratuita e obrigatória da Europa. A experiência com os estudos bíblicos semanais dos chamados “Colóquios de Genebra” formaram a base para a criação da Academia de Genebra, embrião da futura Universidade. Por outro lado, cabe anotar que o tom pedagógico e didático que atravessa todos seus escritos se enquadra nessa preocupação pastoral de levar o povo à compreensão do verdadeiro sentido da presença da igreja no mundo.
Para Calvino (IRC, IV, I.2-3), além de a igreja ser o resultado concreto dentro da história, da articulação de uma fé dinâmica, ela possui um caráter sagrado, é resultado da vontade divina e significa a continuação da encarnação, ou seja, ela é “o corpo de Cristo”, presente como testemunho de Deus entre suas criaturas e antecipação do Reino vindouro de Cristo:
Além disso, o Reformador, fiel à herança da igreja primitiva, não hesita em recuperar aspectos relativos à natureza da igreja que, segundo sua percepção, não devem ser esquecidos. Assim, como parte de suas funções, Calvino explicita que a igreja tem um papel importante e único na obra de salvação. Como um entusiasmado membro da igreja ele afirma a igreja como a mãe dos fiéis. Calvino (IRC, IV, I.4), observa que ao:
“...tratar aqui da igreja visível... aprendamos já de seu título de mãe que proveitoso e necessário nos é conhecê-la, já que não há outro caminho para chegar à vida senão que sejamos concebidos no seio desta mãe, que nos dá à luz, que nos alimenta com seus seios, e que nos ampara e defende até que, despojados desta carne mortal, sejamos semelhantes aos anjos (Mt 20.30).”
Dando muita ênfase à necessidade da comunhão interna, da solidariedade permanente entre os membros da comunidade da fé, a sanctorum communio, o reformador se ocupou em chamar a atenção para as atitudes autocentradas das pessoas que não podem pôr em perigo a unidade da comunhão dos santos. Portanto, pontua Calvino (IRC, IV, I.10):
“De todo modo, é certo que onde quer que se escute com reverência a pregação do Evangelho e os sacramentos não sejam menosprezados, ali há uma forma da Igreja, que não pode ser posta em dúvida, e de forma alguma é lícito menosprezar sua autoridade, ou omitir-se de suas admoestações, nem contradizer seus conselhos, ou burlar-se de suas correções. Muito menos será lícito apartar-se dela e romper sua união. Porque tanto aprecia o Senhor a comunhão de sua Igreja, que tem como traidor e apóstata de sua religião cristã a todo o que de maneira contumaz se aparta de qualquer companhia cristã em que se encontra o ministério verdadeiro de sua Palavra e de seus sacramentos.”
Como pastor preocupado com a convivência de seus párocos, Calvino não estabeleceu um comportamento nem radical nem árduo, como muitas vezes se pensa. Para ele a diversidade de opiniões com respeito às questões não essenciais não deveria ser motivo de desunião entre as igrejas. O mesmo no que diz respeito aos usos e costumes do povo. Fazendo abundante uso de exemplos retirados da experiência de Paulo, Calvino recomenda a indulgência e a clemência de todos para com todos. Combate o perfeccionismo de alguns e aponta com precisão a não existência de uma igreja pura, sem manchas nem pecados. Usa como exemplo maior os relatos de Paulo relativos à igreja de Corinto. Quando introduz o tema da disciplina eclesiástica, o faz, basicamente, no sentido da recuperação ou restauração por meio do arrependimento: “Se não se tem este espírito humanitário, tanto em particular como em geral, se corre o perigo de que a disciplina se converta prontamente num ofício de verdugos” (IRC, IV, I.10). Além disso, ele acrescenta: “A severidade deve ser moderada pela misericórdia.”
Como pastor e pedagogo da comunidade cristã reformada, ele se ocupou com a formação doutrinária e teológica do conjunto dos participantes da igreja, produzindo catecismos, ordenanças, confissões, hinário, decretos e um esmagador conjunto de comentários bíblicos.
Calvino como homem público
Nosso Reformador passou à história como se tivesse sido uma espécie de homem-forte, ditador ou líder absoluto desta cidade-estado. Nada mais falso e equivocado. É verdade que teve uma influência esmagadora entre seus concidadãos, que sempre foi ouvido pelo Conselho civil que dirigia a cidade (formado por cerca de 200 vereadores que nem sempre estiveram de acordo com ele ou aceitaram suas sugestões) e que ele esteve à frente de uma série de inovações em diferentes âmbitos da vida pública.
Genebra já era uma cidade protestante antes de sua chegada ali. Pode-se dizer que o êxito de seu trabalho se deve, em grande medida, à situação experimentada pela cidade, que vivia um intenso processo de transformação sócio-política e cultural-religiosa desde os inícios da década de trinta. Sua relação com o Conselho político dirigente jamais foi fácil ou pacífica. Ao contrário, cheia de conflitos e contradições em função do interesse do Conselho de controlar a igreja, mesmo fazendo parte dela. É bom recordar que Genebra havia adotado a Reforma em 1536 e Calvino somente regressa à Genebra e assume, de fato, seu grande ministério nessa cidade no ano de 1541, depois de haver estado ali por dois anos como professor de Teologia na catedral de São Pedro, até ser expulso pelo Conselho, juntamente com Farel, no ano de 1538. Até seu falecimento em 1564, Calvino trabalhou em Genebra na condição de Ministro da Palavra (ministre de la Parole). Recusou, sistematicamente, qualquer outro cargo civil ou estatal.
Sua visão das relações entre Igreja e Estado vai determinar sua posição como cristão, cidadão e político. Em sua perspectiva, estas três qualificações são simultâneas e inseparáveis. Ou seja, o cristão está, enquanto cidadão deste mundo e partícipe do povo de Deus, definitivamente envolvido no processo de ordenamento da vida da comunidade humana, ou seja, a política. Tudo isto advém da compreensão do sentido da vocação cristã no mundo e das relações entre a comunidade cristã e a comunidade civil. Devedor de Agostinho, principalmente de sua obra “A cidade de Deus”, onde este desenvolve a ideia da história humana sendo atravessada pela tensa relação das duas cidades, a divina e a humana, Calvino retoma e modifica a noção luterana dos “dois reinos”. Enquanto que para o Reformador alemão estes dois reinos são esferas completamente separadas, para Calvino eles são compreendidos como dois âmbitos distintos, mas igualmente ordenados por Deus. Escreve ele (IRC, IV, XX.9): “Vemos, pois, que os governantes são constituídos [por Deus] como protetores e conservadores da tranquilidade, honestidade, inocência e modéstia públicas (Rm 13.3), e que devem ocupar-se de manter a saúde e a paz comum.” Como apontou D. K. McKim (1998, p. 327):
“Para Calvino, portanto, os contornos da história são moldados tanto por forças ‘seculares’ como ‘espirituais’. Elas, porém, não são independentes umas das outras; ambas estão submetidas a uma interpretação providencial da história, que se vê caminhando em direção a sua consumação definitiva no Reino de Deus ou no Reino de Cristo.”
Para Calvino, o reinado de Cristo sobre a história ou seu domínio sobre ela significa que toda vida é uma só parte, que toda ela pertence a Deus, onde o “sagrado” e o “secular” não são compartimentos estanques, fechados sobre si mesmos, mas simplesmente espaços distintos sob uma só direção do espírito de Cristo. “Portanto, não se deve pôr em dúvida que o poder civil é uma vocação, não somente santa e legítima diante de Deus, mas também mui santa e honrosa entre todas as vocações” (IRC, IV, XX.4). Como demonstrou Abraham Kuyper, nesta perspectiva de Calvino, “a vida toda está consagrada ao serviço de Deus.”
É sob este fundo de uma filosofia cristã da história que se pode entender a profunda preocupação e o acendrado interesse de Calvino “pelas coisas deste mundo”, sua ojeriza aos espitualismos psicoemocionais (sua resistência às ideias anabatistas, por exemplo), desencarnados e de costas viradas para os problemas concretos do povo. Assim como a leitura especulativo-racionalista e/ou sem levar em conta as necessárias mediações histórico-críticas da Bíblia.
Fiel a esta perspectiva hermenêutica vai estar sempre atento ao que passa na sociedade em seu redor. Ocupa-se de temas sociais, culturais, políticos e econômicos que dizem respeito à vida da comunidade genebrina e, também, ao mundo europeu como um todo. Mais que Lutero, a quem se referia como seu “muito honrado Pai” (très honoré Père), Calvino se dava conta de que se encontrava no olho de um furacão de formidáveis mudanças que sacudiam as velhas estruturas da Europa. Sentia que um novo mundo estava nascendo e procurava respostas, biblicamente iluminadas, para este novo estado de coisas que começava a aparecer no horizonte da história. Como seus concidadãos, ele mesmo se debatia entre as contradições geradas pelo choque entre antigos valores e comportamentos e as novas demandas e novos valores que buscavam espaço para impor-se. E isto ocorria em todas as dimensões da vida.
Sensível a tudo isto, Calvino se revela como um pensador criativo, buscando na erudição acumulada e no exercício de um inquieto espírito reflexivo estabelecer novas pautas para processar uma nova e rigorosa releitura da Bíblia sob os sinais do novo tempo que ele tem que viver. Dentre suas produções originais está a discussão, em outros termos, das relações entre ricos e pobres. Assim, sob a percepção bíblica de que o Evangelho foi primeiramente dirigido aos pobres, ele desenvolve, por um lado, o conceito do “mistério do pobre”, e, por outro, do “ministério dos ricos”, sendo estes vistos como provedores daqueles, a fim de que a justiça se estabeleça na sociedade. Na mesma perspectiva teológica sobre a natureza do trabalho, a importância do comércio, o desenvolvimento econômico e a questão da cobrança de juros nos empréstimos. Sobre esta última, chega a ditar um sermão na catedral sob o título “Longo sermão sobre os juros”! Com a mesma ênfase se ocupa com a educação da infância e da juventude, tomando iniciativa a partir da própria igreja e exigindo do Conselho a criação e manutenção de escolas, casas para anciãos e órfãos desvalidos e medidas de proteção para os asilados político-religiosos. Ou seja, a agenda de trabalho de Calvino era ditada pelos grandes temas da vida cotidiana do povo que, por sua vez, eram entendidos sob a luz da revelação bíblica.
Epílogo
Calvino foi um homem excepcional que soube reunir em sua pessoa, em mútuo diálogo e interdependência interior, a capacidade crítica e analítica do teólogo, a preocupação e o desvelo do pastor com a vigilante militância do cidadão, politicamente comprometido com o bem-estar de seu povo. Com humildade, mas também com firmeza, tomou decisões muito importantes, mesmo que, às vezes, trágicas, lamentáveis e equivocadas, que marcaram para sempre a vida e o desenvolvimento da comunidade genebrina, com repercussões que alcançaram o mundo. Foi um homem íntegro que intentou plasmar sua vida segundo as coordenadas do Evangelho, conforme ele o pôde compreender. Os conteúdos de seus achados bíblico-teológicos, mas nem sempre suas formulações, se constituem, até hoje, uma fonte importante para a vida da igreja e para a atualização de nossas experiências, enquanto testemunhos idôneos do Evangelho.
Depois de 1564, data de sua travessia pelos portais eternos, ou como disse um novelista brasileiro, para “a terceira margem do rio”, sua experiência sofreu transformações muito profundas que lhe retiraram o brilho e a força da novidade evangélica, que até então fazia pulsar a vida genebrina. É quando começa a nascer o “Calvinismo” ou o exercício da proposta de vida de Calvino para a igreja e a sociedade por parte de seus companheiros, seguidores e admiradores da mesma Genebra e de outras partes do mundo europeu.
Calvino faleceu um ano depois do término do Concílio de Trento (1545-1563), com a igreja romana disposta a rechaçar radicalmente as doutrinas protestantes. Com isso a segunda geração de reformados se sentiu obrigada a se empenhar na defesa da autoridade da Bíblia com os mesmos argumentos aristotélico-tomistas usados pelos romanos para justificar a autoridade da igreja. Não foi, pois, uma decisão livre, mas uma imposição do paradigma filosófico dominante, uma sujeição ao espírito da época.
Semelhantemente ao luterano Melancton, Theodoro de Beza, que trabalhou com Calvino dirigindo a Academia de Genebra e, depois, o sucedeu na direção da igreja, começou a sistematizar a obra do Reformador nos termos do molde filosófico aristotélico. Com isso, ele e seus sucessores deram origem a um Calvinismo escolástico que significou a elaboração de um sistema teológico racionalista e absolutista que, se por um lado correspondia ao espírito do tempo, no que se refere à ênfase na especulação racional que, em grande parte, abandona a exegese do texto bíblico; por outro representava a negação da abordagem agostiniana que estava no âmago do método teológico de João Calvino. Quer dizer, seus discípulos e seguidores vão sucumbir à perspectiva dominante de seus opositores (ainda firmemente ancorados no paradigma medieval) assumindo, em oposição a Calvino, as categorias metodológicas do tomismo racionalista do período anterior à Reforma.
Esta alteração conceitual-metodológica teve consequências muito profundas para o desenvolvimento do ethos calvinista subsequente, na medida em que a teologia passou a ser entendida como uma ciência abstrata, especulativa e técnica. Exatamente o contrário do que ela significava para Calvino, como já vimos. Com isso, o rigor lógico e a precisão tomaram o lugar da piedade agostiniano-calvinista. Este escolasticismo, que predomina nos ambientes reformados durante todo século XVII, vai encontrar em Francisco Turretini, que assumiu a cátedra de Teologia da Universidade de Genebra em 1664, seu grande sistematizador. Na elaboração de sua obra fundamental, Institutio Theologiae Elencticae, ele adotou o método teológico da Summa de Tomás de Aquino e, quando da fundamentação de sua doutrina da Escritura, vai citar 175 teólogos e autoridades eclesiásticas, mas sem mencionar nenhuma única vez a João Calvino (Rogers, Jack, apud McKim, 1998)!
A ortodoxia que se constrói a partir da sistematização, em termos escolásticos, da experiência calvinista, é a que vai dar forma e conteúdo à cosmovisão reformada que se consolida no interior da cultura anglo-saxã em ambos os lados do Atlântico. Seus ingredientes teológicos mais significativos estão presentes na maioria das “Confissões, Declarações ou Princípios de Fé” de muitas igrejas Presbiterianas ou Reformadas que se constituíram desde então.
Infelizmente, como muitas vezes acontece com várias outras importantes figuras da história humana, nosso Calvinismo, na grande maioria de suas expressões, contribuiu muito mais para ocultar que para revelar a João Calvino.
Referências Bibliográficas
CALVINO, J. Institución de Religión Cristiana. Trad. de Cipriano Valera, revisada. Rijswjk: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1981.MCKIM, D. K. (Org.). Grandes temas da tradição reformada. São Paulo: Pendão Real, 1998.
SHAULL, R. A reforma protestante e a teologia da libertação: perspectivas para os desafios da atualidade. São Paulo: Pendão Real, 1993.
TAWNEY, R. H. A religião e o surgimento do capitalismo. São Paulo: Perspectiva, 1971.
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* Zwínglio M. Dias é doutor em Teologia pela Universidade de Hamburgo (Alemanha), pastor da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e editor da revista eletrônica “Tempo & Presença”. Artigo de sua autoria sob título original “O Calvino desconhecido... (Alguns apontamentos sobre João Calvino antes do Calvinismo)”. Usado com permissão da revista eletrônica Tempo & Presença. Disponível em: http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_artigo=338&cod_boletim=18&tipo=Artigo. Acesso em: 21 de out. 2020.- Gerar link
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