Destaques
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
✢ CALVINO E O TRATO COM OS HEREGES EM GENEBRA
A
tentativa do artigo não é defender ou acusar Genebra e Calvino, mas apurar
alguns polêmicos episódios que ainda causam espanto, interpretações apaixonadas
ou desarrazoadas, defesas e acusações sem o menor conhecimento de suas causas.
Seria a Genebra do século XVI uma cidade em tempos de cólera? E Calvino,
igualmente, seria também intolerante?
As
questões relacionadas com a justiça genebresa, ainda que en passand, exigem
uma necessária alusão ao trato de Calvino e Genebra com os heréticos, como
Servet, Bolsec, Castellion etc., quando ainda não existia o conceito de
tolerância. Séculos adiante, Calvino foi criticado mordazmente e Servet
considerado como uma pessoa imolada por Calvino.
Não
buscando defender Calvino, apenas querendo analisar seu contexto, é necessário
lembrar que a polêmica condenação à morte na fogueira, de Michel Servet, deu-se
em 1553 e, a alguns séculos de distância do ocorrido, ainda ressoam as apreensões
sobre tal monstruosidade, com todos os anacronismos de julgamentos fora daquele
preciso contexto.
Tolerância?
Ocorre que nem o conceito nem mesmo a palavra existiam no século XVI. Pode-se
até elogiar, como honrosa exceção, o posterior empenho do filósofo francês Jean
Bodin, que lutou em prol da tolerância entre católicos e huguenotes, na França
daquele período. Porém, é necessário apontar que a tolerância, de fato, nasceu
somente na década de 1680, nos ensinos dos iluministas; depois, se inscreveu na
parte nordeste da Europa, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na verdade, é
obra de um homem em particular: John Locke, no século XVIII2.
Como a
tolerância, portanto, ainda inexistia naquele século XVI, pode-se recorrer a
outro exemplo de um período próximo àquele: é importante lembrar que até mesmo
o autor de “A utopia”, Thomas More, foi fiel ao seu ideal de humanista
católico. More dava preferência à morte ignominiosa de traidores que renegassem
os seus príncipes. Ele admitia a morte de hereges na fogueira, pois nada seria
possível fazer com os hereges senão queimá-los (COTTRET, 1981).
Calvino
também não foi tolerante. Mas, poderia ter sido, embora não se poderia esperar
dele um declarado campeão da tolerância, das liberdades individuais e dos
direitos civis da sociedade. Infelizmente, nem todo o senso filosófico das
atitudes conciliatórias, do irenismo e da valorização da paz entre os cristãos,
ou mesmo da indiferença que permita a coexistência, nada disso merece o nome de
tolerância. Nesse sentido, a lógica de Calvino não apelaria para uma contradição
de consciência, mas para uma “transação”.
O
sucessor de Calvino em Genebra, Théodore de Bèze, sempre sublinhou a clemência
de Calvino: para Bèze havia apenas ocorrido uma execução de um herege: Servet.
Bèze comparou Calvino e Genebra com as outras cidades suíças e alemãs, onde
foram mortos muitos anabatistas, e então afirmou que houve casos semelhantes em
que Genebra apenas baniu aqueles que considerava sectários.
Citou os
exemplos de clemência para com Hiérome Bolsec, que havia blasfemado contra a
providência de Deus. Foi clemente com Sébastien Castellion, que amaldiçoou
livros das Escrituras Sagradas; e ainda com Valentin, que blasfemou contra a
essência divina. Nenhum deles foi morto: Bolsec foi banido de Genebra.
Castellion teve problemas apenas quando saiu de Genebra e foi para Basiléia.
Valentin foi colocado no esquecimento, após pedir publicamente perdão a Deus e
à Senhoria ou Pequeno Conselho da cidade (COTTRET, 1990)3.
Diante
disso, perguntava Bèze: onde está a crueldade? Para ele, somente esse único
herege, Servet, foi queimado na fogueira, em mais de trinta anos (BÈZE, 1565, apud
COTTRET, 1995). Ainda foi o mesmo Bèze quem respondeu a Castellion,
ex-professor da Academia de Genebra e outro acusado de heresia, afirmando a autoridade
dos magistrados em punir os heréticos. Castellion foi condenado ao banimento e
tornou-se professor da Sorbonne. O texto-resposta de Bèze, datado de 1560, foi
o “Traité de l’autorité du magistrat en la punition des hérétiques et du
moyen d’y procéder” (Tratado sobre a autoridade do magistrado em punir os
heréticos e do seu modo de proceder).
Não se
pretende arriscar conclusões, exceto fazer a ressalva de que se deve cuidar
mais para não serem cometidos anacronismos e compreender que o erro de Calvino
foi o erro de sua época. Atenuante? Em todo caso, um erro, um grande erro a ser
sempre condenado.
Porém,
respeita-se a própria organização política de Genebra e a forma como o Pequeno
Conselho, ou Pequeno Conselho, reservava para si o poder de decisões. Soma-se a
isso o fato de Calvino ser um estrangeiro na cidade, sem poder decisório.
Apenas tinha o poder de levar ao Pequeno Conselho assuntos que os próprios
síndicos que o compunham resolviam entre si. Então, é muito estranho atribuir a
Calvino outro poder que não apenas esse.
Vale,
portanto, analisar cada caso em que houve a participação direta ou indireta de
Calvino para buscar compreender a sua época, a sua cidade, a sua postura e os
limites de sua atuação, de sua ingerência em negócios políticos de Genebra, e
de sua tolerância, ou mesmo de sua falta.
Esse
frade carmelita, parisiense e médico, Jérôme-Hermès Bolsec, se voltou contra
Calvino e a doutrina da predestinação. Bèze tratou Bolsec como homem cheio de
nuances. Genebra assustava-se com o atrevimento desse carmelita que, em plena
congregação, repreendia a doutrina da providência e discordava da
predestinação. Era como se os calvinistas estivessem fazendo de Deus o autor do
pecado e culpado pela condenação dos ímpios (BÈZE, 1565 apud COTTRET,
1995).
Calvino
chegou a atribuir essa ignorância e insolência à sua formação monacal. Julgava
que Bolsec merecia punição por seu ato de sedição. Mas que poderia ser tratado
com mais doçura pelos magistrados. Afinal, poderia haver cura para esse
ignorante sofista. O velho carmelita parisiense acabou instalando-se
efetivamente em Genebra como médico. Em pouco tempo já foi convocado perante o
Pequeno Conselho. Seus erros: recusava a predestinação e tinha ideias
controversas acerca do livre arbítrio. Com certeza, a predestinação se
constitui em um dos dogmas mais contestados do calvinismo doutrinário.
De fato,
o que causa polêmica é a confusão com a dupla predestinação. Quem faz essa
confusão acaba criticando o Deus que escolheu salvar alguns e também escolheu
condenar outros. Entender a predestinação requer uma atenção maior e um espaço
que não existe no artigo.
Mas,
Bolsec foi mesmo imprudente e anunciava que o Deus pregado em Genebra era
mentiroso e hipócrita, o patrono dos criminosos e pior que Satanás.
Publicamente atacou Calvino, no dia 16 de outubro de 1551. Nas igrejas daquela
época havia algo como grupos de estudos bíblicos que permitiam as contravenções
e participações dos leigos. Bolsec se insurgiu contra a explicação
predestinacionista. Logo à saída, Bolsec já foi conduzido à prisão do bispado,
para aguardar o julgamento.
As
autoridades civis tinham muita dificuldade técnica para julgar questão dessa
importância. Não se achavam competentes para disputas tão altas e difíceis e
restou a Bolsec confrontar Calvino acerca dessa doutrina que o médico julgava
absurda. Ele enviou a Calvino um verdadeiro quebra-cabeças metafísico: os
“Artigos propostos por Jerome Bolsec ao mestre Calvino, a fim de que ele
responda categoricamente e sem razões humanas nem similitudes vãs, mas
simplesmente através da palavra de Deus” (BÈZE, 1565 apud COTTRET, 1995,
p.178). Após tentativas e consultas às Igrejas de Berna, Basiléia e Zurique, o
Pequeno Conselho de Genebra resolveu pelo banimento de Bolsec, em 23 de
dezembro de 1551 (COTTRET, 1995).
O fato
de ter desafiado a autoridade dogmática de Calvino e sua dificuldade em receber
instruções, levou o Pequeno Conselho a optar pelo banimento daquele homem que
poderia oferecer perigos à própria cidade. Prova disso é que após a expulsão de
Bolsec, em 1552 ouviam-se nas tabernas e cabarés os motejos: “Calvino faz de
Deus o autor do pecado”. Também em 1553, Robert Lemoine, refugiado normando,
compareceu perante o Consistório por esposar essas teses muito pessoais (COTTRET,
1995). Não houvesse o banimento de Bolsec e o Pequeno Conselho teria problemas
multiplicados até perder o controle. Esse era o problema que um herege
representava numa comunidade daquele contexto.
Até
mesmo entre os ministros surgiam dissensões. O pastor André Zébédée, de Noyon,
e Jean Lange, de Bursin, pregaram contra as ideias de Calvino, em 1555 (COTTRET,
1995). Iniciando com Bolsec a pregação das teses anticalvinistas tomaram vulto
nos anos seguintes. Berna precisou punir Sébastien Foncellet, o autor da
epigrama que considerava Genebra como Sodoma e os ímpios como reformadores.
Bolsec
retornou ao catolicismo, em 1577, treze anos após a morte de Calvino. Na
ocasião, publicou o livro “História da vida, modos, atos, doutrinas, constância
e morte de João Calvino, antigo pastor de Genebra” (ALMEIDA, 1996). Levantou,
nesse livro, inúmeras falsidades e calúnias contra Calvino. Destilou toda a sua
raiva contra o reformador. Acusou-o de arrogante, orgulhoso, cruel, maligno,
vingativo e ignorante. Ainda se atreveu a caluniá-lo como sodomita ou
homossexual, ladrão de prata, participante de uma falsa ressurreição, guloso e
impuro.
Não é
difícil rejeitar uma a uma dessas acusações. Nem mesmo é necessário, face aos
fatos históricos que são comprovados. No entanto, as falácias colaram e até
hoje muitas dessas infâmias são tidas como verdadeiras pelos que ignoram a
história de Calvino. Como se as fofocas prevalecessem sobre as narrativas
abalizadas e historicamente verificadas. O livro de Bolsec circulou bastante.
Foi condenado até mesmo pelos católicos, mas circulou porque parece que o povo gosta
de ler coisas deste nível. Bolsec faleceu por volta de 1584.
Após
toda a difamação iniciada por Bolsec ainda a acusação que persiste é a de que
Calvino pessoalmente matou Servet. Isso contraria a lógica dos fatos e da própria
estrutura de Genebra. No máximo, pode-se atribuir a Calvino a concordância com
a condenação deste herege.
Miguel
Servet (1511-1553), ou Michael Servetus em latim, ou aportuguesando-se para
Miguel Serveto, já havia sido condenado pela Igreja Católica4. Fugiu
da primeira condenação, mas acabou descoberto em Genebra. Não se intimidou, mas
continuou desafiando a Igreja, primeiro a católica, agora a protestante. No
século 16 não poderia esperar-se outro final: foi condenado à morte.
Médico,
teólogo, filósofo, geógrafo, astrônomo e astrólogo, este espanhol nascido em
Vilanova de Sigena-Huesca, no norte da Espanha, defendia ideias teológicas que
contrariavam tanto as doutrinas católicas quanto as calvinistas. Acusado de
heresia, Servet já havia sido preso e julgado na França. Conseguiu evadir-se da
prisão e quando se dirigia para a Itália, através da Suíça, foi novamente preso
em Genebra, julgado e condenado a morrer na fogueira, por decisão do Pequeno
Conselho, a pedido do tribunal eclesiástico ou Consistório.
Quando
Serveto residiu na região do Dauphiné francês, na cidade de Vienne5,
trocou correspondências com Calvino sobre assuntos de cunho teológico. Serveto
não aceitava as doutrinas do batismo infantil, da cristologia segundo o
Concílio da Calcedônia, nem mesmo a doutrina da trindade, segundo o Concílio de
Nicéia. Calvino e Serveto romperam esse relacionamento epistolar em 1547.
O
tribunal de Vienne condenou Serveto no dia 17 de junho de 1553, logo após ele
ter publicado “Christianismi restitutio”. Serveto conseguiu fugir da
prisão. Restou aos que o condenaram queimar seus livros e também queimá-lo em
efígie (FARIA, 2008), ou seja, queimar um boneco que representava o condenado.
Como se estivesse executando o próprio herege, ainda que simbolicamente.
Serveto já estava morto para a igreja católica. Morto na fogueira dos hereges.
Em outro país não seria feita a mesma coisa? Obviamente, sim6.
Na rota de
fuga, passando por Genebra, acabou preso. Houve um processo contra ele, baseado
em 38 artigos, condenando-o por heresia. Era o mês de agosto de 1553. Era uma
época sombria e em Genebra havia um grupo de opositores a Calvino que se
aproveitaram da situação para criar polêmica. Entre eles estava o genebrino
Philibert Berthelier, do partido político dos “articulantes”, anticalvinista, e
ele decidiu defender Serveto e confrontar Calvino.
Calvino
compareceu diante do Pequeno Conselho e se declarou contra Serveto. Porém, aqui
entra um comentário que desmente a sua crueldade, sem desculpá-lo de sua
intolerância. Calvino pedira a Farel, por meio de carta, “Espero que Serveto
seja condenado à morte, mas desejo que seja poupado dos horrores da fogueira” (FARIA,
2008, p.224).
O
Pequeno Conselho decidiu consultar as igrejas das cidades vizinhas, Berna,
Zurique e Schaffhouse. Também consultou a cidade de Viena, pedindo cópias da
condenação que infringiram a Serveto. Vienne pediu a extradição do prisioneiro,
para ser sentenciado na fo-gueira daquela cidade francesa. Serveto não tinha
para onde correr, ou a fogueira vienense ou a genebrina. A morte era iminente,
inescapável.
O Pequeno
Conselho de Genebra organizou uma discussão entre Calvino e Serveto para
demonstrar a Serveto quais eram os seus erros. Nesse período, também Berthelier
compareceu no Pequeno Conselho pedindo o cancelamento de sua própria excomunhão
e afrontou o Consistório que lhe infringira tal pena.
No dia
primeiro de setembro de 1553, Berthelier conseguiu sua admissão à eucaristia já
para o domingo seguinte, dia três de setembro. Foi nesse dia que Calvino
protestou e se recusou a servir a santa ceia ao excomungado. Até mesmo pregou
um sermão de despedida, o calor da quebra de braços entre Calvino e esses
libertinos, do partido dos articulans, os enfants de Genève.
A
disputa se acirrou e as autoridades de Calvino e do Consistório foram
desafiadas. Juntamente com os pastores de Genebra, no dia sete de setembro,
Calvino e os demais protestaram diante do Pequeno Conselho solicitando a
independência do poder eclesiástico. Repetiram o protesto no dia 15. No dia 18
de setembro, o Pequeno Conselho decidiu “ater-se aos editos como era o costume
anterior” (FARIA, 2008, p.225).
Serveto,
por sua vez, não se aquietava e ainda mandou ao Pequeno Conselho um pedido para
que Calvino fosse preso. Apoiava-se na lei de talião, e desejava retaliar
aquele que o acusara falsamente, acusando-o de heresia e exigindo a condenação
dele. Foragido de Vienne, preso em Genebra, condenado à morte, deu essa última
cartada, contando com a divisão da cidade e com o apoio daqueles que
confrontavam Calvino. Serveto colocou em xeque o Pequeno Conselho de Genebra: a
morte dele ou minha.
A
resposta das outras cidades suíças chegou a Genebra em 18 de outubro de 1553.
Todas condenavam Serveto e sua heresia. Apoiavam Calvino e os demais pastores
de Genebra. A morte de Calvino ou a de Serveto?
No dia
26 de setembro, o Pequeno Conselho de Genebra decretou a condenação de Serveto
à morte na fogueira, já para o dia seguinte. Novamente Calvino escreveu a
Farel, explicando-se: “Nós nos temos esforçado para mudar o tipo de morte. Foi
em vão. Eu lhe direi de viva voz porque nada conseguimos” (FARIA, 2008, p.225).
A
sentença foi dada pelo Pequeno Conselho de Genebra, que condenou e executou
Serveto, dando ganho de causa ao Consistório. Para fazê-lo, o Pequeno Conselho
pediu a opinião da liderança eclesiástica das demais cidades suíças e até da
cidade católica de Vienne. Calvino e os demais líderes religiosos do
Consistório foram confrontados pelo genebrino Berthelier e demais opositores.
Calvino foi acusado por Serveto que queria sua condenação à morte. Serveto
perdeu a batalha. Morte? Sim, a dele e não de Calvino, como ele mesmo
sentenciara.
Assim, o
Pequeno Conselho resolveu o que somente a ele cabia fazer: executar a justiça
própria da época e daquela cidade – executou Serveto. O Pequeno Conselho,
Calvino e os pastores de Genebra, as cidades suíças de Berna, Zurique e
Schaffhouse, além da católica Vienne e do próprio Serveto: todos pediam a sua
morte. Intolerância típica do século XVI.
Crueldade?
Por parte dos executores houve, sim. Mas, não se pode continuar imputando
somente a Calvino a condenação de Serveto, muito menos atribuir-lhe crueldade.
Se houve alguém que intercedeu para que não queimassem Serveto vivo na
fogueira, esse foi Calvino.
Depois,
as acusações de crueldade continuaram sendo dirigidas justamente contra aquele
que desejou poupar Serveto, ainda que Serveto jamais desejasse isso para o
próprio Calvino. Invertendo as posições, Serveto seria apoiado por Bethelier e
outros opositores libertinos. Todos se deliciariam vendo Calvino arder na
fogueira.
Crueldade?
Sim, houve mesmo. Mas, não por conta de Calvino. Porém, como há requintes
sempre lembrados, atribuem a crueldade à pessoa errada. Quem sentenciou Serveto
foi o Pequeno Conselho de Genebra, apoiado por Berna, Zurique e Schaffhouse,
Vienne. O Consistório e Calvino ganharam a disputa: era Calvino ou Serveto. O
Pequeno Conselho deu ganho de causa a Calvino e condenou Serveto.
Após
isso, aqueles que desconhecem a história condenaram Calvino e deram glórias de
mártir a Serveto. Talvez isso se revista de crueldade histórica ou injustiça
perante os fatos.
Reiterando,
houve crueldade contra Serveto: uma coroa de espinhos com enxofre foi colocada
sobre a cabeça do sentenciado. Foi usada lenha verde para que a fogueira
durasse mais e para que o suplício fosse mais cruel e doloroso etc. Depois,
some-se a isso o atribuir exclusivamente a Calvino a culpa por esse erro
monumental. Na verdade, foi um erro infeliz e corriqueiro de uma cidade em seu
contexto. Aliás, de várias cidades.
A
católica Vienne já desejara fazer isso antes. Coube à protestante Genebra
fazê-lo. Serveto morreu queimado duplamente: pelos católicos e pelos
protestantes. Calvino foi o carrasco? A sentença foi cumprida pelo Pequeno
Conselho de Genebra, num local chamado Champel, nas proximidades da cidade, no
dia 27 de outubro de 1553.
O nome
de Miguel Serveto deveria estar definitivamente incorporado à história da
medicina. Serveto foi um precursor de Harvey na descoberta da circulação
sanguínea. Foi Serveto quem primeiro descreveu a circulação pulmonar com
exatidão, cem anos antes de Harvey. Curioso é que até mesmo a sua descoberta
foi, por muito tempo, ignorada pela medicina oficial.
Lembram-se
da execução e morte de Serveto. Esquecem a sua vida. Ele foi um médico de alto
nível. Também foi um homem que desafiou a sua época, confrontou a liderança
eclesiástica católica e depois a protestante. Insistiu em combater a doutrina
da trindade e acabou sucumbindo, perdendo a batalha. Findou morto e como a
constante pedra no sapato de Calvino, como o pomo de discórdia entre os que
admiram e os que detestam Calvino. Verdade ou mentira? Antes de perguntar-se
isso, deve-se questionar: verdade de qual época?
Foi
condenado pelo catolicismo ainda medieval e penou sob o poder de um
protestantismo ainda nascente e que pretendia deixar de lado os erros
religiosos do medievalismo. No caso de Serveto verificou-se que quem de fato o
executou foi o Pequeno Conselho de Genebra. Era o Pequeno Conselho ainda
dominado pelos libertinos, pelas famílias Perrin e Berthelier.
Após
essa condenação erroneamente conduzida, os libertinos caíram em descrédito em
Genebra. Os “guilherminos” eram o partido que apoiava Calvino. Lutou pela volta
do reformador à cidade em 1541. Agora, após o caso Serveto, em 1553, acabaram
tomando o poder que pertencera aos libertinos ou “articulans” e
favoreceram Calvino.
Como
vingança, parece terem sido os próprios libertinos os primeiros a difamar
Calvino e atribuir falsamente a condenação de Serveto ao reformador. Os
libertinos o mataram. Caíram em descrédito. Perderam o poder do Pequeno
Conselho. Então, fizeram de Calvino o bode expiatório de sua incompetência.
Para muitos, o erro dos libertinos ainda vem sendo pago por Calvino.
O caso
Serveto custou e ainda custa muito caro aos protestantes calvinistas. Até hoje,
muitos deixam de estudar e conhecer a grandeza de Calvino devido ao polêmico
episódio com os hereges, especialmente com Serveto. Muitos erraram, e somente o
calvinismo ainda paga a conta.
A
polêmica correu os séculos. Voltaire acusou Calvino por agir como o papa dos
protestantes. Porém, depois Montesquieu reconheceu seu gênio e sugeriu que os
genebrinos deveriam tornar bendito o dia que Calvino nasceu. Por mais
contraditório que pareça, ao final Calvino se tornou um dos patronos dos
direitos humanos, principalmente por ter lutado por algo maior que este erro
compartilhado com os líderes de Genebra e demais cidades.
O
próprio Pequeno Conselho de Genebra defendeu e implantou regras e pontos
importantes que servem até hoje como referência mundial de democracia
representativa. Calvino, em particular, defendeu a teoria do direito civil de
resistir aos abusos do Estado, um problema filosófico-político de desobediência
civil e do direito de revolta. Esse líder protestante, cujo destino se cruzou
com o de Genebra, antecipou ideias que o colocaram entre os fundadores do
pensamento político moderno.
Como uma
pedra que se coloca sobre a questão, houve a corajosa atitude de reconhecimento
do erro e o pedido público de desculpas por parte dos seguidores de Calvino,
séculos após o trágico fato de 1553. Por ocasião dos 350 anos da morte de
Serveto, em 1903, os protestantes de Genebra erigiram um monumento expiatório:
Filhos
respeitosos e agradecidos de Calvino, nosso grande reformador, mas condenando
um erro que foi do seu século, e firmemente ligados à liberdade de consciência,
segundo os autênticos princípios da Reforma e do Evangelho, erigimos esse
monumento em 22 de outubro de 1903. (BIÉLER, 1963,
p.475).
Serveto
continuou como um souvenir em Genebra após o seu suplício. Existem
relatos de casos relacionados: em 1556, Matthieu Antoine foi banido por
defender as propostas de Serveto. Em 1558, o porteiro Jean Jacquement condenou
aquele fim trágico que lhe deram. Catherine Cop sustentou que Serveto era
“mártir de Jesus”.
Bèze o
reputou como “espanhol de maldita memória”, “não um homem, mas um monstro
terrível” com todas as heresias velhas e novas, blasfemador execrável contra a
trindade e a eternidade do Filho de Deus (COTTRET, 1995). Outros mais se
revelaram contrários ao suplício de Serveto e o calvinismo continuou a ser
responsabilizado por seu suplício. Entre eles estava uma pessoa que fora muito
querida de Calvino: Castellion.
Sébastien
Castellion (1515-1563) era compatriota de Calvino, natural da região do
Dauphiné francês, da cidade de Saint-Martin-du-Fresne, próxima à divisa com a
Suíça (COTTRET, 1995). Estudou no Collège de la Trinité em Lyon. Tornou-se
grande conhecedor de grego, hebraico, italiano, alemão e latim.
Por
volta de 1540 ele aderiu ao protestantismo em Lyon, onde presenciara muitas
fogueiras contra os hereges. Abalado com isso, procurou refúgio em Estrasburgo,
onde brilhava o espírito do jovem reformador Calvino, o autor das “Institutas”.
Após a
volta de Calvino para Genebra, Farel indicou a seu amigo o ainda mais jovem
Castellion, para lecionar na Academia de Genebra. Castellion foi aceito e
acabou tornando-se também o diretor do Collège de Rive, pertencente à
mesma instituição fundada por Calvino, em 1555. Foi o substituto do diretor
Maturin Cordier que retornara a Neuchâtel e depois iria a Lausanne. Prosperou
rapidamente devido ao seu grande talento.
Em
Genebra, inicialmente hospedou-se na própria casa de Calvino. Sua competência
pedagógica e a divulgação de seu livreto “Colloques” tornaram-no bem
conhecido. Era ainda o autor de “Dialogues sacrés” (Diálogos sacros), em
edição bilíngue, latim-francês, combinando a educação religiosa com os ensinos
clássicos.
Castellion
resolveu candidatar-se também ao ministério. Tinha muitos filhos e o salário de
professor lhe era insuficiente. Porém, tinha ideias teológicas que contrariavam
Calvino e Genebra. Calvino, então, pediu que aumentassem seu salário de
professor. Mas, não o recomendou para o ministério. Entre os pontos de
divergência, Castellion rejeitava o livro canônico de Cântico dos cânticos, por
julgá-lo libidinoso, lascivo e obsceno. Também rejeitava o trecho do Credo
Apostólico que menciona ter Cristo descido ao Hades. Ainda discordava da
doutrina da predestinação. Castellion fez uma tradução do Novo Testamento em
linguagem popular. Nova rejeição, agora devido a erros crassos de linguagem e
da própria tradução, inexata e grosseira. Passou a se comportar feito um enfant
terrible e criticou os pastores de Genebra.
Calvino
não suportou a desordem e pleiteou contra Castellion junto às autoridades civis
de Genebra. Além de interditar seu acesso ao ministério, foi-lhe cassado o
direito de pregar. Calvino ainda simpatizava com Castellion, quando sugeriu que
recebesse um aumento salarial. Mas, Castellion não aceitou ter sido reprovado
para o ministério e resolveu partir de Genebra. Tinha ainda 29 anos.
Em
janeiro de 1554 foi dispensado de suas funções de diretor no Collège e
dirigiu-se a Basiléia, onde trabalhou como auxiliar na imprensa de Oporin. Lá
ele reencontrou Thomas Platter e Francisco de Enzimas, conhecido como Dryander.
Começou com eles a tradução da Bíblia (COTTRET, 1995).
Platter
havia sido aprisionado quando apresentou ao rei Carlos V o seu projeto de
tradução do Novo Testamento de 1543. Ele buscou refúgio na Inglaterra onde foi
nomeado professor de grego na Universidade de Cambridge em 1548. Em 1549 partiu
para Basiléia e depois Estrasburgo. Morreu em 1552, contaminado pela peste (COTTRET,
1995).
Também
Castellion juntou-se ao grande jurista de Basiléia, Boniface Amerbach.
Finalmente, após dificuldades financeiras que enfrentou, Castellion conseguiu
sua nomeação como professor de grego na Universidade da cidade. Em 1546 ele
usou o pseudônimo Moses latinus para traduzir uma parte do Pentateuco. Em 1547
traduziu os Salmos.
Foi em
1551 que ele resolveu fazer a tradução latina da Bíblia para Eduardo VI. Buscou
dar um conteúdo metodológico à distinção entre a letra e o espírito das
Escrituras (COTTRET, 1995). Porém, essa sua reforma ortográfica não foi bem
aceita. Castellion ao sair de Genebra, havia pedido uma carta de recomendação
que atestasse seu bom caráter e competência pedagógica. Calvino e os demais
pastores da Venerável Companhia de Pastores de Genebra assinaram esse documento
honroso recomendando-o para Basiléia. Afinal, era amigo daqueles pastores.
Em
Basiléia acabou tornando querido e renomado, como era de se esperar. Porém,
iniciou a enviar suas correspondências que combatiam indiretamente a Calvino.
Logo após a morte de Serveto em 1553, Calvino escreveu o “Tratado sobre a
heresia” (1554). Castellion, então, saiu a campo atacando severa e diretamente
Calvino. Verdadeiros ataques de cólera contra a “bcher de Servet” (A
fogueira de Serveto), que ainda ardia nas consciências.
Castellion
acabou escrevendo um texto que apontava para a tolerância naquele século 16.
Mas, ainda não era a real tolerância que se desejava. Talvez mais a liberdade
de consciência que propriamente a tolerância. É dele a frase: “Quando se mata
um herege, não estamos matando uma doutrina, mas um homem” (ALMEIDA, 1996,
p.71).
Como o
Pequeno Conselho de Genebra sentiu-se atingido, dirigiu-se ao concílio de
Basiléia e à sua universidade. Exigiu a reparação do caso. Calvino não tratou
pessoalmente a questão. Embora Castellion fosse muito prestigiado em Basiléia,
a publicação de seu livro atacando Calvino foi impedida. Era o seu “Tratado dos
heréticos, a saber se devem ser perseguidos, e como se deve conduzir com eles,
segundo o conselho, opinião e sentença de muitos autores tanto antigos quanto
modernos” (1554).
Castellion
usou o pseudônimo de Martinus Bellius e publicou esse panfleto condenando as ideias
de Calvino. Bellius vem de bellum, latim, e significa guerra. Ele
queria combater o erro de terem condenado Serveto. Nessa guerra, posteriormente
Bèze incluiu Castellion na sua galeria de monstros. Com isso, Calvino partiu
para o contra-ataque ferrenho e extremamente severo. Basiléia sentiu-se
ofendida com as acusações feitas por Calvino ao seu ilustre hóspede e mestre.
Revogou a interdição e autorizou a publicação do livro de Castellion. Com
muitos insultos violentos Castellion esconjurou Calvino.
Nesse
ínterim, descobriram que Castellion mantinha relações sigilosas com um inimigo
da causa evangélica e reconhecidamente herético: Ochino, um ex-franciscano
convertido ao protestantismo, mas que escrevia obras que contrariavam a nova
fé. Castellion traduzira uma das obras de Ochino e todo o seu renome e lisura
caíram por terra.
Em 1554
Bèze escreveu sua resposta a Castellion. A resposta teve sua versão francesa em
1560, com o título “Tratado sobre a autoridade do magistrado em punir os
heréticos e seu modo de proceder”. Não foram tomadas providências pela
universidade de Basiléia. Mas, o Sínodo Geral das Igrejas Reformadas da Suíça o
condenou por heresia e falsidade, em 1563. Porém, Castellion morreu prematura e
repentinamente antes de ser executado (ALMEIDA, 1996).
Na
contramão de tudo que vem sendo apontado com relação ao trato com os heréticos,
há um verdadeiro furo de reportagem que resgata a imagem de Calvino. Esse furo
de reportagem é de 2008 e tem relação com a carta escrita por Calvino lá em
1545.
Essa
carta hoje se encontra entre as preciosidades do Museu Internacional da Reforma
(MIR), em Genebra. É um manuscrito autografado por Calvino, de 1545, que mostra
o reformador em seu ângulo mais humano. Para esse museu, o achado é mais do que
uma preciosidade. Ele foi colocado em exposição sob a proteção de uma vitrine,
protegido contra a exposição direta de luz, em uma das doze salas do MIR.
O
manuscrito datado de 23 de janeiro de 1545 é a única carta conhecida de João
Calvino sobre o suicídio. Nela, o teólogo conta que havia sido chamado à
véspera por Jean Vachat, um cidadão que havia perfurado duas vezes o próprio
abdômen com uma faca, para acabar com seus sofrimentos de tuberculoso e asmático.
O texto é surpreendente, raro e inesperado. “Eu o exortei com minhas palavras a
armar-se de paciência e a consolar-se na graça de Deus”, escreveu Calvino nessa
carta. Antes de morrer, o suicida foi visitado por Calvino e confessou a ele
seu erro, como revela o documento. O reformador tratou a questão do suicida de
um ponto de vista teológico e sua carta apresenta-o: “[...] confrontado à
realidade dos sofrimentos físicos, sofrimentos que terminam se tornando morais
à medida que a pessoa tem a impressão de ter sido abandonada por Deus” (COTTRET,
1995, p.237).
Apesar
dos esforços de Calvino e dos barbeiros da cidade, que eram os cirurgiões
naquela época, Jean Vachat morreu no mesmo dia. Na paisagem religiosa e ética
da época, o suicídio era uma questão grave e exigia um procedimento da justiça
penal que negava ao suicida até mesmo a sepultura cristã.
O
procedimento penal começava com a entrega da queixa ou da constatação do
delito. No dia seguinte, Calvino e os outros intervenientes no caso – um
segundo pastor e dois cirurgiões –, entregaram, conforme os costumes da época,
seus relatórios ao Tenente da Justiça, que era o representante da polícia de
Genebra. Mediante a autópsia do corpo, os investigadores chegaram à conclusão
que Jean Vachat poderia ter sobrevivido aos ferimentos se ele já não estivesse
enfraquecido pela asma, da qual sofria e que era origem do seu gesto
desesperado.
Apesar
desses elementos, o Tenente da Justiça considerou o caso extremamente
escandaloso. Ele permaneceu insensível aos pedidos de Calvino e ordenou que o
corpo do suicida fosse enterrado sob o cadafalso, sem sepultura cristã.
Isabelle Graesslé analisa que o relatório revela um lado humano de Calvino. Ele
mostra que o mais severo dos teólogos não era aquilo que imaginávamos.
Mas,
esse retrato poderia não ter sido pintado e essa nova faceta “mais luminosa” da
personalidade de Calvino poderia ter permanecido desconhecida para sempre. O
motivo? A carta foi roubada e ficou desaparecida por mais de um século.
Na
primeira metade do século 19, James Galiffe, um funcionário auxiliar nos
arquivos havia criado uma pequena coleção de peças não catalogadas. Ele roubou,
então, a carta de Calvino que estava nos Arquivos do Estado de Genebra, assim
como o dossiê completo do caso do suicida Vachat.
Os
herdeiros do ladrão James Galiffe devolveram as preciosidades aos arquivos
apenas em 1915. O único objeto que faltava era o documento assinado por
Calvino, que provavelmente havia sido vendido ou dado a um colecionador
particular antes dessa data. Ele só retornou à tona em 2003, quando foi
leiloado na famosa casa Sotheby’s, em Paris.
A
reaparição do raro documento provocou consternação na cidade de Calvino, onde
os Arquivos do Estado protestaram com firmeza, mas sem ter sucesso em fazer
valer seus direitos. A carta terminou sendo comprada por um colecionador, que
morreu em 2005. Os descendentes do colecionador decidiram então revendê-la. Ela
foi posta em leilão em julho de 2007, na Christie’s de Londres, onde passou
para as mãos do seu novo proprietário pela soma de 70 mil libras. Foi comprada
pelo grupo de mecenas que apoiou a construção do Museu Internacional da Reforma7.
Em seus
vários salões, o museu lembra sempre da evolução da Genebra de Calvino, do seu
estatuto de “Roma protestante” ao desenvolvimento da cidade com grandes
construções, promovidas para receber os huguenotes. E a história vem até os
dias de hoje, como detalha Olivier Fatio, presidente do conselho da Fundação do
Museu, pois trata das guerras religiosas até a resistência ao nazismo, da
predestinação às mulheres assumindo postos na Igreja e trabalhando como missionárias
no exterior, dos conflitos dogmáticos até ao ecumenismo e o diálogo entre as
religiões8.
Esta é
uma grande realização para Genebra, que precisou de mais de cem anos até
concretizar o seu MIR. O museu não é apenas um local de memória. Sobretudo,
quando as pessoas estão hoje entre o desencanto com a religião do passado e à
procura de novas respostas às questões espirituais, a Reforma vira um tema
extremamente atual.
O que se
sabe de Calvino no Brasil ainda é muito pouco. Há a triste constatação de que
nem mesmo os que se dizem fiéis calvinistas conhecem algo de substancial desse
reformador universal. Isso chega a estarrecer. Há mesmo alguns que se dizem
guardiães da herança deixada por Calvino, mas que não conseguem passar das
meras citações a favor ou contra, com acusações pesadas ou defesas apaixonadas.
Leitura e compreensão para acusar ou defender? Quase nada. Conhecimento?
Praticamente nulo.
Há
alguns bons conhecedores de Calvino. Mas, parece que guardaram tudo isso para
si mesmos. Por que não pesquisam e escrevem? Por receio ou por descaso, há o
risco de se perder o rumo da história e o de perder também o norte para o
presente e para o futuro.
Quem
sabe alguns retratos ajudem os leitores a visualizarem e a descobrirem a
importância de Calvino para o seu tempo e para hoje. Retratos de um homem e de
seu tempo. Pois, sem dissociar esse homem de seu tempo é possível aplicar as
interpretações de seu mundo e contextualizá-las na busca de soluções para os
problemas de nossa própria época.
A opção
por apresentar esse retrato de Calvino corresponde a apelar para algo não
estático, mas sempre em movimento. No caso de Calvino, seus retratos congelam,
condensam, identificam-se com a fugacidade do traço e com a verdade da alma.
Portanto, se estão ainda em movimento, estão inacabados, e não poderão ser
totalmente fechados ou concluídos. Calvino merece esse retrato em movimento.
Existem
vários retratos contraditórios de Calvino. Mesmo que houvesse um só, ainda
assim teria várias interpretações, de diferentes observadores. Todo personagem
histórico passa por este crivo. O que se pode tentar é desenhar ou insistir em
um retrato ainda inacabado do reformador.
Há
vários detalhes e traços a considerar. Entre tantos, pode-se detalhar a
primeira estada em Genebra e a tentativa fracassada de reforma por parte de
Calvino e seu mentor Farel; ou a consequente expulsão de Calvino e o traçado de
sua peregrinação por várias cidades como Basiléia, Genebra, Estrasburgo, até
regressar novamente a Genebra.
Outros
traços podem delinear o amadurecimento desse líder religioso e político, bem
como as contribuições que posteriormente deu à cidade e ao mundo. Retratar
Calvino é também fazer uma análise de seus escritos. Quando o foco é político,
há que se privilegiar o que tange ao seu pensamento político, com todas as
nuanças possíveis.
Para a
fase de elaboração desse retrato é preciso buscar um entendimento melhor do
plano de fundo, da paisagem ou do palco dos acontecimentos: Genebra e a
revolução religiosa ocorrida no século XVI. Partindo desse contexto de
reviravoltas no cenário religioso e político da Europa renascentista, é
possível desvendar alguns traços de sua personalidade e ainda tentar algumas
pinceladas sobre o pensamento desse personagem que, por sua vez, foi descoberto
por Genebra.
Também é
preciso viajar no tempo e no espaço para pintar melhor o plano de fundo:
Genebra. A partir da cidade, se pode compreender o protagonista dessa história
e descobrir o seu pensamento. A Genebra que ficou conhecida como cidade
calvinista, no sentido próprio, era um lugar de refúgio para onde afluíam os
insatisfeitos, os insaciáveis, os que amavam a Cristo, desejosos de construir
uma sociedade cristã ideal, quinze séculos após a pregação de Jesus.
Referências
ALMEIDA,
J.T. Calvino e sua herança. [S.l.:s.n.], 1996. p.71.
BIÉLER,
A. L’homme et la femme dans la morale calviniste. Genève: Labor et
Fides, 1963.
COTTRET,
B. Traducteurs et divulgateurs clandestins de la Réforme dans l‘Angleterre
henricienne, 1520-1535. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, n.28,
p.472, 1981.
COTTRET,
B. Tolerance et liberté de conscience? Épistémologie et politique à l’aube des
Lumières. Études Théologiques et Religieuses, n.65, p.333-350, 1990.
COTTRET,
B. Calvin biographie. Paris: Jean-Claude Lattès, 1995. p.178-237.
FARIA,
E.G. (Org.). João Calvino: textos escolhidos. São Paulo: Pendão Real,
2008. p.224-225.
2 Ainda a
tolerância de Locke é distinta da liberdade de consciência, apregoada por
Bayle, segundo o qual essa liberdade repousa sobre o direito de errar. No
sentido estrito, a liberdade de consciência não admite qualquer restrição,
contrariamente à tolerância que repousa sobre a arbitragem da sociedade. A este
respeito ver: Cottret (1990).
3 A esse
respeito há um trabalho desenvolvido por Bernard Cottret (1990): Biographie,
porém não caberia aqui a detalhada explanação acerca de cada um desses
personagens. A indicação fica para os textos: “Bolsec et la foutue
predestination”, v.1551, p.218-222; “Saint Servet, hérétique et martyr”,
1553; “Le bcher de Servet”, p. 223-227, 228-234; “Castellion”, p.
235-241.
4 Servet
ou Serveto (1511-1553) era um físico espanhol. Descobriu que a doutrina Nicena
da Trindade usava termos não-bíblicos, e após estudar a Bíblia e os padres
anti-nicenos formulou outro ponto de vista, rico em teologia eucarística e
batismal. Publicou seus pontos de vista em “De trinitatis erroribus libri VI”
(1531), e novamente em “Cristianismi restitutio” (1553), o que ocasionou
a sua execução como herege em Genebra. Ele considerava o Espírito Santo como
uma força e não como uma pessoa. Negou a eterna geração do Verbo etc. Era
também um geógrafo e anatomista, e cria que a Bíblia deveria ser estudada em
seu contexto histórico (Westminster Dictionary of Church History, p.763;
Oxford Dictionary, p.1263).
5 Vienne,
no Dauphiné francês, é uma comuna francesa do Departamento de Isère. Seu nome é
aportuguesado para Viena, mas isso causa confusão com a outra Viena, a capital
da Áustria. Houve, em Vienne, o XV Concílio Ecumênico que condenou à extinção a
Ordem dos Cavaleiros Templários, entre 1311 e 1312.
6 Disponível
em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Michel_Servet>.
Acesso em: 23 jul. 2008.
7 Disponível
em: <http://www.swissinfo.ch/por/swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853>.
Acesso em: 23 maio 2008.
8 Disponível
em: <http://www.swissinfo.ch/por/swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853>.
Acesso em: 10 jun. 2008.
- Como
citar este artigo/How to cite this article SILVESTRE,
A.A. Calvino e o trato com os hereges em Genebra. Reflexão, v.43, n.1,
p.155-167, 2018. http://dx.doi.org/10.24220/2447-6803v43n1a3695
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Postagens mais visitadas
✢ CALVINO E O POLÊMICO CASO SERVETO (1553)
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
✢ A MORTE DE JOÃO CALVINO
- Gerar link
- X
- Outros aplicativos
Comentários
Postar um comentário