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✢ LANÇAMENTO: LIVRO "CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS"

  J. A. Lucas Guimarães | Organizador ✢ ✢ ✢ Não é sem imensa expectativa e alegria que se empreende a publicação da décima primeira obra de caráter temático calviniano da Coleção  Calvino21 , sob autoria do Rev. J. A. Lucas Guimarães, historiador, teólogo e organizador do Calvino21 , intitulado  CALVINO, CIÊNCIA E FAKE NEWS:  a invenção da oposição calviniana à Ciência moderna na historiografia do século XIX.   Principalmente, ao considerar a singularidade do conteúdo, o nível do conhecimento alcançado e o caráter da percepção do passado envolvida, disponibilizados à leitura, reflexão e intelectualidade, caso o arbítrio do bom senso encontrado, esteja em diálogo com a coerência da boa vontade leitora. | ✢|   Conheça a Coleção Calvino21 :   PubliCALVINO21 Com a convicção da pertinência da presente obra ao estabelecimento da verdade histórica sobre a postura de João Calvino (1509-1564) diante dos ensaios preparatórios no século XVI  ao início da Ciência Moderna ocorrido no século XVII,  

✢ CALVINO E O TRATO COM OS HEREGES EM GENEBRA

  
Armando Araújo Silvestre

 Introdução

A tentativa do artigo não é defender ou acusar Genebra e Calvino, mas apurar alguns polêmicos episódios que ainda causam espanto, interpretações apaixonadas ou desarrazoadas, defesas e acusações sem o menor conhecimento de suas causas. Seria a Genebra do século XVI uma cidade em tempos de cólera? E Calvino, igualmente, seria também intolerante?

As questões relacionadas com a justiça genebresa, ainda que en passand, exigem uma necessária alusão ao trato de Calvino e Genebra com os heréticos, como Servet, Bolsec, Castellion etc., quando ainda não existia o conceito de tolerância. Séculos adiante, Calvino foi criticado mordazmente e Servet considerado como uma pessoa imolada por Calvino.

Não buscando defender Calvino, apenas querendo analisar seu contexto, é necessário lembrar que a polêmica condenação à morte na fogueira, de Michel Servet, deu-se em 1553 e, a alguns séculos de distância do ocorrido, ainda ressoam as apreensões sobre tal monstruosidade, com todos os anacronismos de julgamentos fora daquele preciso contexto.

Tolerância? Ocorre que nem o conceito nem mesmo a palavra existiam no século XVI. Pode-se até elogiar, como honrosa exceção, o posterior empenho do filósofo francês Jean Bodin, que lutou em prol da tolerância entre católicos e huguenotes, na França daquele período. Porém, é necessário apontar que a tolerância, de fato, nasceu somente na década de 1680, nos ensinos dos iluministas; depois, se inscreveu na parte nordeste da Europa, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na verdade, é obra de um homem em particular: John Locke, no século XVIII2.

Como a tolerância, portanto, ainda inexistia naquele século XVI, pode-se recorrer a outro exemplo de um período próximo àquele: é importante lembrar que até mesmo o autor de “A utopia”, Thomas More, foi fiel ao seu ideal de humanista católico. More dava preferência à morte ignominiosa de traidores que renegassem os seus príncipes. Ele admitia a morte de hereges na fogueira, pois nada seria possível fazer com os hereges senão queimá-los (COTTRET, 1981).

Calvino também não foi tolerante. Mas, poderia ter sido, embora não se poderia esperar dele um declarado campeão da tolerância, das liberdades individuais e dos direitos civis da sociedade. Infelizmente, nem todo o senso filosófico das atitudes conciliatórias, do irenismo e da valorização da paz entre os cristãos, ou mesmo da indiferença que permita a coexistência, nada disso merece o nome de tolerância. Nesse sentido, a lógica de Calvino não apelaria para uma contradição de consciência, mas para uma “transação”.

O sucessor de Calvino em Genebra, Théodore de Bèze, sempre sublinhou a clemência de Calvino: para Bèze havia apenas ocorrido uma execução de um herege: Servet. Bèze comparou Calvino e Genebra com as outras cidades suíças e alemãs, onde foram mortos muitos anabatistas, e então afirmou que houve casos semelhantes em que Genebra apenas baniu aqueles que considerava sectários.

Citou os exemplos de clemência para com Hiérome Bolsec, que havia blasfemado contra a providência de Deus. Foi clemente com Sébastien Castellion, que amaldiçoou livros das Escrituras Sagradas; e ainda com Valentin, que blasfemou contra a essência divina. Nenhum deles foi morto: Bolsec foi banido de Genebra. Castellion teve problemas apenas quando saiu de Genebra e foi para Basiléia. Valentin foi colocado no esquecimento, após pedir publicamente perdão a Deus e à Senhoria ou Pequeno Conselho da cidade (COTTRET, 1990)3.

Diante disso, perguntava Bèze: onde está a crueldade? Para ele, somente esse único herege, Servet, foi queimado na fogueira, em mais de trinta anos (BÈZE, 1565, apud COTTRET, 1995). Ainda foi o mesmo Bèze quem respondeu a Castellion, ex-professor da Academia de Genebra e outro acusado de heresia, afirmando a autoridade dos magistrados em punir os heréticos. Castellion foi condenado ao banimento e tornou-se professor da Sorbonne. O texto-resposta de Bèze, datado de 1560, foi o “Traité de l’autorité du magistrat en la punition des hérétiques et du moyen d’y procéder” (Tratado sobre a autoridade do magistrado em punir os heréticos e do seu modo de proceder).

Não se pretende arriscar conclusões, exceto fazer a ressalva de que se deve cuidar mais para não serem cometidos anacronismos e compreender que o erro de Calvino foi o erro de sua época. Atenuante? Em todo caso, um erro, um grande erro a ser sempre condenado.

Porém, respeita-se a própria organização política de Genebra e a forma como o Pequeno Conselho, ou Pequeno Conselho, reservava para si o poder de decisões. Soma-se a isso o fato de Calvino ser um estrangeiro na cidade, sem poder decisório. Apenas tinha o poder de levar ao Pequeno Conselho assuntos que os próprios síndicos que o compunham resolviam entre si. Então, é muito estranho atribuir a Calvino outro poder que não apenas esse.

Vale, portanto, analisar cada caso em que houve a participação direta ou indireta de Calvino para buscar compreender a sua época, a sua cidade, a sua postura e os limites de sua atuação, de sua ingerência em negócios políticos de Genebra, e de sua tolerância, ou mesmo de sua falta.

 1551: Bolsec e a predestinação

Esse frade carmelita, parisiense e médico, Jérôme-Hermès Bolsec, se voltou contra Calvino e a doutrina da predestinação. Bèze tratou Bolsec como homem cheio de nuances. Genebra assustava-se com o atrevimento desse carmelita que, em plena congregação, repreendia a doutrina da providência e discordava da predestinação. Era como se os calvinistas estivessem fazendo de Deus o autor do pecado e culpado pela condenação dos ímpios (BÈZE, 1565 apud COTTRET, 1995).

Calvino chegou a atribuir essa ignorância e insolência à sua formação monacal. Julgava que Bolsec merecia punição por seu ato de sedição. Mas que poderia ser tratado com mais doçura pelos magistrados. Afinal, poderia haver cura para esse ignorante sofista. O velho carmelita parisiense acabou instalando-se efetivamente em Genebra como médico. Em pouco tempo já foi convocado perante o Pequeno Conselho. Seus erros: recusava a predestinação e tinha ideias controversas acerca do livre arbítrio. Com certeza, a predestinação se constitui em um dos dogmas mais contestados do calvinismo doutrinário.

De fato, o que causa polêmica é a confusão com a dupla predestinação. Quem faz essa confusão acaba criticando o Deus que escolheu salvar alguns e também escolheu condenar outros. Entender a predestinação requer uma atenção maior e um espaço que não existe no artigo.

Mas, Bolsec foi mesmo imprudente e anunciava que o Deus pregado em Genebra era mentiroso e hipócrita, o patrono dos criminosos e pior que Satanás. Publicamente atacou Calvino, no dia 16 de outubro de 1551. Nas igrejas daquela época havia algo como grupos de estudos bíblicos que permitiam as contravenções e participações dos leigos. Bolsec se insurgiu contra a explicação predestinacionista. Logo à saída, Bolsec já foi conduzido à prisão do bispado, para aguardar o julgamento.

As autoridades civis tinham muita dificuldade técnica para julgar questão dessa importância. Não se achavam competentes para disputas tão altas e difíceis e restou a Bolsec confrontar Calvino acerca dessa doutrina que o médico julgava absurda. Ele enviou a Calvino um verdadeiro quebra-cabeças metafísico: os “Artigos propostos por Jerome Bolsec ao mestre Calvino, a fim de que ele responda categoricamente e sem razões humanas nem similitudes vãs, mas simplesmente através da palavra de Deus” (BÈZE, 1565 apud COTTRET, 1995, p.178). Após tentativas e consultas às Igrejas de Berna, Basiléia e Zurique, o Pequeno Conselho de Genebra resolveu pelo banimento de Bolsec, em 23 de dezembro de 1551 (COTTRET, 1995).

O fato de ter desafiado a autoridade dogmática de Calvino e sua dificuldade em receber instruções, levou o Pequeno Conselho a optar pelo banimento daquele homem que poderia oferecer perigos à própria cidade. Prova disso é que após a expulsão de Bolsec, em 1552 ouviam-se nas tabernas e cabarés os motejos: “Calvino faz de Deus o autor do pecado”. Também em 1553, Robert Lemoine, refugiado normando, compareceu perante o Consistório por esposar essas teses muito pessoais (COTTRET, 1995). Não houvesse o banimento de Bolsec e o Pequeno Conselho teria problemas multiplicados até perder o controle. Esse era o problema que um herege representava numa comunidade daquele contexto.

Até mesmo entre os ministros surgiam dissensões. O pastor André Zébédée, de Noyon, e Jean Lange, de Bursin, pregaram contra as ideias de Calvino, em 1555 (COTTRET, 1995). Iniciando com Bolsec a pregação das teses anticalvinistas tomaram vulto nos anos seguintes. Berna precisou punir Sébastien Foncellet, o autor da epigrama que considerava Genebra como Sodoma e os ímpios como reformadores.

Bolsec retornou ao catolicismo, em 1577, treze anos após a morte de Calvino. Na ocasião, publicou o livro “História da vida, modos, atos, doutrinas, constância e morte de João Calvino, antigo pastor de Genebra” (ALMEIDA, 1996). Levantou, nesse livro, inúmeras falsidades e calúnias contra Calvino. Destilou toda a sua raiva contra o reformador. Acusou-o de arrogante, orgulhoso, cruel, maligno, vingativo e ignorante. Ainda se atreveu a caluniá-lo como sodomita ou homossexual, ladrão de prata, participante de uma falsa ressurreição, guloso e impuro.

Não é difícil rejeitar uma a uma dessas acusações. Nem mesmo é necessário, face aos fatos históricos que são comprovados. No entanto, as falácias colaram e até hoje muitas dessas infâmias são tidas como verdadeiras pelos que ignoram a história de Calvino. Como se as fofocas prevalecessem sobre as narrativas abalizadas e historicamente verificadas. O livro de Bolsec circulou bastante. Foi condenado até mesmo pelos católicos, mas circulou porque parece que o povo gosta de ler coisas deste nível. Bolsec faleceu por volta de 1584.

 1553: o polêmico caso Serveto

Após toda a difamação iniciada por Bolsec ainda a acusação que persiste é a de que Calvino pessoalmente matou Servet. Isso contraria a lógica dos fatos e da própria estrutura de Genebra. No máximo, pode-se atribuir a Calvino a concordância com a condenação deste herege.

Miguel Servet (1511-1553), ou Michael Servetus em latim, ou aportuguesando-se para Miguel Serveto, já havia sido condenado pela Igreja Católica4. Fugiu da primeira condenação, mas acabou descoberto em Genebra. Não se intimidou, mas continuou desafiando a Igreja, primeiro a católica, agora a protestante. No século 16 não poderia esperar-se outro final: foi condenado à morte.

Médico, teólogo, filósofo, geógrafo, astrônomo e astrólogo, este espanhol nascido em Vilanova de Sigena-Huesca, no norte da Espanha, defendia ideias teológicas que contrariavam tanto as doutrinas católicas quanto as calvinistas. Acusado de heresia, Servet já havia sido preso e julgado na França. Conseguiu evadir-se da prisão e quando se dirigia para a Itália, através da Suíça, foi novamente preso em Genebra, julgado e condenado a morrer na fogueira, por decisão do Pequeno Conselho, a pedido do tribunal eclesiástico ou Consistório.

Quando Serveto residiu na região do Dauphiné francês, na cidade de Vienne5, trocou correspondências com Calvino sobre assuntos de cunho teológico. Serveto não aceitava as doutrinas do batismo infantil, da cristologia segundo o Concílio da Calcedônia, nem mesmo a doutrina da trindade, segundo o Concílio de Nicéia. Calvino e Serveto romperam esse relacionamento epistolar em 1547.

O tribunal de Vienne condenou Serveto no dia 17 de junho de 1553, logo após ele ter publicado “Christianismi restitutio”. Serveto conseguiu fugir da prisão. Restou aos que o condenaram queimar seus livros e também queimá-lo em efígie (FARIA, 2008), ou seja, queimar um boneco que representava o condenado. Como se estivesse executando o próprio herege, ainda que simbolicamente. Serveto já estava morto para a igreja católica. Morto na fogueira dos hereges. Em outro país não seria feita a mesma coisa? Obviamente, sim6.

Na rota de fuga, passando por Genebra, acabou preso. Houve um processo contra ele, baseado em 38 artigos, condenando-o por heresia. Era o mês de agosto de 1553. Era uma época sombria e em Genebra havia um grupo de opositores a Calvino que se aproveitaram da situação para criar polêmica. Entre eles estava o genebrino Philibert Berthelier, do partido político dos “articulantes”, anticalvinista, e ele decidiu defender Serveto e confrontar Calvino.

Calvino compareceu diante do Pequeno Conselho e se declarou contra Serveto. Porém, aqui entra um comentário que desmente a sua crueldade, sem desculpá-lo de sua intolerância. Calvino pedira a Farel, por meio de carta, “Espero que Serveto seja condenado à morte, mas desejo que seja poupado dos horrores da fogueira” (FARIA, 2008, p.224).

O Pequeno Conselho decidiu consultar as igrejas das cidades vizinhas, Berna, Zurique e Schaffhouse. Também consultou a cidade de Viena, pedindo cópias da condenação que infringiram a Serveto. Vienne pediu a extradição do prisioneiro, para ser sentenciado na fo-gueira daquela cidade francesa. Serveto não tinha para onde correr, ou a fogueira vienense ou a genebrina. A morte era iminente, inescapável.

O Pequeno Conselho de Genebra organizou uma discussão entre Calvino e Serveto para demonstrar a Serveto quais eram os seus erros. Nesse período, também Berthelier compareceu no Pequeno Conselho pedindo o cancelamento de sua própria excomunhão e afrontou o Consistório que lhe infringira tal pena.

No dia primeiro de setembro de 1553, Berthelier conseguiu sua admissão à eucaristia já para o domingo seguinte, dia três de setembro. Foi nesse dia que Calvino protestou e se recusou a servir a santa ceia ao excomungado. Até mesmo pregou um sermão de despedida, o calor da quebra de braços entre Calvino e esses libertinos, do partido dos articulans, os enfants de Genève.

A disputa se acirrou e as autoridades de Calvino e do Consistório foram desafiadas. Juntamente com os pastores de Genebra, no dia sete de setembro, Calvino e os demais protestaram diante do Pequeno Conselho solicitando a independência do poder eclesiástico. Repetiram o protesto no dia 15. No dia 18 de setembro, o Pequeno Conselho decidiu “ater-se aos editos como era o costume anterior” (FARIA, 2008, p.225).

Serveto, por sua vez, não se aquietava e ainda mandou ao Pequeno Conselho um pedido para que Calvino fosse preso. Apoiava-se na lei de talião, e desejava retaliar aquele que o acusara falsamente, acusando-o de heresia e exigindo a condenação dele. Foragido de Vienne, preso em Genebra, condenado à morte, deu essa última cartada, contando com a divisão da cidade e com o apoio daqueles que confrontavam Calvino. Serveto colocou em xeque o Pequeno Conselho de Genebra: a morte dele ou minha.

A resposta das outras cidades suíças chegou a Genebra em 18 de outubro de 1553. Todas condenavam Serveto e sua heresia. Apoiavam Calvino e os demais pastores de Genebra. A morte de Calvino ou a de Serveto?

No dia 26 de setembro, o Pequeno Conselho de Genebra decretou a condenação de Serveto à morte na fogueira, já para o dia seguinte. Novamente Calvino escreveu a Farel, explicando-se: “Nós nos temos esforçado para mudar o tipo de morte. Foi em vão. Eu lhe direi de viva voz porque nada conseguimos” (FARIA, 2008, p.225).

A sentença foi dada pelo Pequeno Conselho de Genebra, que condenou e executou Serveto, dando ganho de causa ao Consistório. Para fazê-lo, o Pequeno Conselho pediu a opinião da liderança eclesiástica das demais cidades suíças e até da cidade católica de Vienne. Calvino e os demais líderes religiosos do Consistório foram confrontados pelo genebrino Berthelier e demais opositores. Calvino foi acusado por Serveto que queria sua condenação à morte. Serveto perdeu a batalha. Morte? Sim, a dele e não de Calvino, como ele mesmo sentenciara.

Assim, o Pequeno Conselho resolveu o que somente a ele cabia fazer: executar a justiça própria da época e daquela cidade – executou Serveto. O Pequeno Conselho, Calvino e os pastores de Genebra, as cidades suíças de Berna, Zurique e Schaffhouse, além da católica Vienne e do próprio Serveto: todos pediam a sua morte. Intolerância típica do século XVI.

Crueldade? Por parte dos executores houve, sim. Mas, não se pode continuar imputando somente a Calvino a condenação de Serveto, muito menos atribuir-lhe crueldade. Se houve alguém que intercedeu para que não queimassem Serveto vivo na fogueira, esse foi Calvino.

Depois, as acusações de crueldade continuaram sendo dirigidas justamente contra aquele que desejou poupar Serveto, ainda que Serveto jamais desejasse isso para o próprio Calvino. Invertendo as posições, Serveto seria apoiado por Bethelier e outros opositores libertinos. Todos se deliciariam vendo Calvino arder na fogueira.

Crueldade? Sim, houve mesmo. Mas, não por conta de Calvino. Porém, como há requintes sempre lembrados, atribuem a crueldade à pessoa errada. Quem sentenciou Serveto foi o Pequeno Conselho de Genebra, apoiado por Berna, Zurique e Schaffhouse, Vienne. O Consistório e Calvino ganharam a disputa: era Calvino ou Serveto. O Pequeno Conselho deu ganho de causa a Calvino e condenou Serveto.

Após isso, aqueles que desconhecem a história condenaram Calvino e deram glórias de mártir a Serveto. Talvez isso se revista de crueldade histórica ou injustiça perante os fatos.

Reiterando, houve crueldade contra Serveto: uma coroa de espinhos com enxofre foi colocada sobre a cabeça do sentenciado. Foi usada lenha verde para que a fogueira durasse mais e para que o suplício fosse mais cruel e doloroso etc. Depois, some-se a isso o atribuir exclusivamente a Calvino a culpa por esse erro monumental. Na verdade, foi um erro infeliz e corriqueiro de uma cidade em seu contexto. Aliás, de várias cidades.

A católica Vienne já desejara fazer isso antes. Coube à protestante Genebra fazê-lo. Serveto morreu queimado duplamente: pelos católicos e pelos protestantes. Calvino foi o carrasco? A sentença foi cumprida pelo Pequeno Conselho de Genebra, num local chamado Champel, nas proximidades da cidade, no dia 27 de outubro de 1553.

O nome de Miguel Serveto deveria estar definitivamente incorporado à história da medicina. Serveto foi um precursor de Harvey na descoberta da circulação sanguínea. Foi Serveto quem primeiro descreveu a circulação pulmonar com exatidão, cem anos antes de Harvey. Curioso é que até mesmo a sua descoberta foi, por muito tempo, ignorada pela medicina oficial.

Lembram-se da execução e morte de Serveto. Esquecem a sua vida. Ele foi um médico de alto nível. Também foi um homem que desafiou a sua época, confrontou a liderança eclesiástica católica e depois a protestante. Insistiu em combater a doutrina da trindade e acabou sucumbindo, perdendo a batalha. Findou morto e como a constante pedra no sapato de Calvino, como o pomo de discórdia entre os que admiram e os que detestam Calvino. Verdade ou mentira? Antes de perguntar-se isso, deve-se questionar: verdade de qual época?

Foi condenado pelo catolicismo ainda medieval e penou sob o poder de um protestantismo ainda nascente e que pretendia deixar de lado os erros religiosos do medievalismo. No caso de Serveto verificou-se que quem de fato o executou foi o Pequeno Conselho de Genebra. Era o Pequeno Conselho ainda dominado pelos libertinos, pelas famílias Perrin e Berthelier.

Após essa condenação erroneamente conduzida, os libertinos caíram em descrédito em Genebra. Os “guilherminos” eram o partido que apoiava Calvino. Lutou pela volta do reformador à cidade em 1541. Agora, após o caso Serveto, em 1553, acabaram tomando o poder que pertencera aos libertinos ou “articulans” e favoreceram Calvino.

Como vingança, parece terem sido os próprios libertinos os primeiros a difamar Calvino e atribuir falsamente a condenação de Serveto ao reformador. Os libertinos o mataram. Caíram em descrédito. Perderam o poder do Pequeno Conselho. Então, fizeram de Calvino o bode expiatório de sua incompetência. Para muitos, o erro dos libertinos ainda vem sendo pago por Calvino.

O caso Serveto custou e ainda custa muito caro aos protestantes calvinistas. Até hoje, muitos deixam de estudar e conhecer a grandeza de Calvino devido ao polêmico episódio com os hereges, especialmente com Serveto. Muitos erraram, e somente o calvinismo ainda paga a conta.

A polêmica correu os séculos. Voltaire acusou Calvino por agir como o papa dos protestantes. Porém, depois Montesquieu reconheceu seu gênio e sugeriu que os genebrinos deveriam tornar bendito o dia que Calvino nasceu. Por mais contraditório que pareça, ao final Calvino se tornou um dos patronos dos direitos humanos, principalmente por ter lutado por algo maior que este erro compartilhado com os líderes de Genebra e demais cidades.

O próprio Pequeno Conselho de Genebra defendeu e implantou regras e pontos importantes que servem até hoje como referência mundial de democracia representativa. Calvino, em particular, defendeu a teoria do direito civil de resistir aos abusos do Estado, um problema filosófico-político de desobediência civil e do direito de revolta. Esse líder protestante, cujo destino se cruzou com o de Genebra, antecipou ideias que o colocaram entre os fundadores do pensamento político moderno.

Como uma pedra que se coloca sobre a questão, houve a corajosa atitude de reconhecimento do erro e o pedido público de desculpas por parte dos seguidores de Calvino, séculos após o trágico fato de 1553. Por ocasião dos 350 anos da morte de Serveto, em 1903, os protestantes de Genebra erigiram um monumento expiatório:

Filhos respeitosos e agradecidos de Calvino, nosso grande reformador, mas condenando um erro que foi do seu século, e firmemente ligados à liberdade de consciência, segundo os autênticos princípios da Reforma e do Evangelho, erigimos esse monumento em 22 de outubro de 1903. (BIÉLER, 1963, p.475).

 Após 1553: a oposição do amigo Castellion

Serveto continuou como um souvenir em Genebra após o seu suplício. Existem relatos de casos relacionados: em 1556, Matthieu Antoine foi banido por defender as propostas de Serveto. Em 1558, o porteiro Jean Jacquement condenou aquele fim trágico que lhe deram. Catherine Cop sustentou que Serveto era “mártir de Jesus”.

Bèze o reputou como “espanhol de maldita memória”, “não um homem, mas um monstro terrível” com todas as heresias velhas e novas, blasfemador execrável contra a trindade e a eternidade do Filho de Deus (COTTRET, 1995). Outros mais se revelaram contrários ao suplício de Serveto e o calvinismo continuou a ser responsabilizado por seu suplício. Entre eles estava uma pessoa que fora muito querida de Calvino: Castellion.

Sébastien Castellion (1515-1563) era compatriota de Calvino, natural da região do Dauphiné francês, da cidade de Saint-Martin-du-Fresne, próxima à divisa com a Suíça (COTTRET, 1995). Estudou no Collège de la Trinité em Lyon. Tornou-se grande conhecedor de grego, hebraico, italiano, alemão e latim.

Por volta de 1540 ele aderiu ao protestantismo em Lyon, onde presenciara muitas fogueiras contra os hereges. Abalado com isso, procurou refúgio em Estrasburgo, onde brilhava o espírito do jovem reformador Calvino, o autor das “Institutas”.

Após a volta de Calvino para Genebra, Farel indicou a seu amigo o ainda mais jovem Castellion, para lecionar na Academia de Genebra. Castellion foi aceito e acabou tornando-se também o diretor do Collège de Rive, pertencente à mesma instituição fundada por Calvino, em 1555. Foi o substituto do diretor Maturin Cordier que retornara a Neuchâtel e depois iria a Lausanne. Prosperou rapidamente devido ao seu grande talento.

Em Genebra, inicialmente hospedou-se na própria casa de Calvino. Sua competência pedagógica e a divulgação de seu livreto “Colloques” tornaram-no bem conhecido. Era ainda o autor de “Dialogues sacrés” (Diálogos sacros), em edição bilíngue, latim-francês, combinando a educação religiosa com os ensinos clássicos.

Castellion resolveu candidatar-se também ao ministério. Tinha muitos filhos e o salário de professor lhe era insuficiente. Porém, tinha ideias teológicas que contrariavam Calvino e Genebra. Calvino, então, pediu que aumentassem seu salário de professor. Mas, não o recomendou para o ministério. Entre os pontos de divergência, Castellion rejeitava o livro canônico de Cântico dos cânticos, por julgá-lo libidinoso, lascivo e obsceno. Também rejeitava o trecho do Credo Apostólico que menciona ter Cristo descido ao Hades. Ainda discordava da doutrina da predestinação. Castellion fez uma tradução do Novo Testamento em linguagem popular. Nova rejeição, agora devido a erros crassos de linguagem e da própria tradução, inexata e grosseira. Passou a se comportar feito um enfant terrible e criticou os pastores de Genebra.

Calvino não suportou a desordem e pleiteou contra Castellion junto às autoridades civis de Genebra. Além de interditar seu acesso ao ministério, foi-lhe cassado o direito de pregar. Calvino ainda simpatizava com Castellion, quando sugeriu que recebesse um aumento salarial. Mas, Castellion não aceitou ter sido reprovado para o ministério e resolveu partir de Genebra. Tinha ainda 29 anos.

Em janeiro de 1554 foi dispensado de suas funções de diretor no Collège e dirigiu-se a Basiléia, onde trabalhou como auxiliar na imprensa de Oporin. Lá ele reencontrou Thomas Platter e Francisco de Enzimas, conhecido como Dryander. Começou com eles a tradução da Bíblia (COTTRET, 1995).

Platter havia sido aprisionado quando apresentou ao rei Carlos V o seu projeto de tradução do Novo Testamento de 1543. Ele buscou refúgio na Inglaterra onde foi nomeado professor de grego na Universidade de Cambridge em 1548. Em 1549 partiu para Basiléia e depois Estrasburgo. Morreu em 1552, contaminado pela peste (COTTRET, 1995).

Também Castellion juntou-se ao grande jurista de Basiléia, Boniface Amerbach. Finalmente, após dificuldades financeiras que enfrentou, Castellion conseguiu sua nomeação como professor de grego na Universidade da cidade. Em 1546 ele usou o pseudônimo Moses latinus para traduzir uma parte do Pentateuco. Em 1547 traduziu os Salmos.

Foi em 1551 que ele resolveu fazer a tradução latina da Bíblia para Eduardo VI. Buscou dar um conteúdo metodológico à distinção entre a letra e o espírito das Escrituras (COTTRET, 1995). Porém, essa sua reforma ortográfica não foi bem aceita. Castellion ao sair de Genebra, havia pedido uma carta de recomendação que atestasse seu bom caráter e competência pedagógica. Calvino e os demais pastores da Venerável Companhia de Pastores de Genebra assinaram esse documento honroso recomendando-o para Basiléia. Afinal, era amigo daqueles pastores.

Em Basiléia acabou tornando querido e renomado, como era de se esperar. Porém, iniciou a enviar suas correspondências que combatiam indiretamente a Calvino. Logo após a morte de Serveto em 1553, Calvino escreveu o “Tratado sobre a heresia” (1554). Castellion, então, saiu a campo atacando severa e diretamente Calvino. Verdadeiros ataques de cólera contra a “bcher de Servet” (A fogueira de Serveto), que ainda ardia nas consciências.

Castellion acabou escrevendo um texto que apontava para a tolerância naquele século 16. Mas, ainda não era a real tolerância que se desejava. Talvez mais a liberdade de consciência que propriamente a tolerância. É dele a frase: “Quando se mata um herege, não estamos matando uma doutrina, mas um homem” (ALMEIDA, 1996, p.71).

Como o Pequeno Conselho de Genebra sentiu-se atingido, dirigiu-se ao concílio de Basiléia e à sua universidade. Exigiu a reparação do caso. Calvino não tratou pessoalmente a questão. Embora Castellion fosse muito prestigiado em Basiléia, a publicação de seu livro atacando Calvino foi impedida. Era o seu “Tratado dos heréticos, a saber se devem ser perseguidos, e como se deve conduzir com eles, segundo o conselho, opinião e sentença de muitos autores tanto antigos quanto modernos” (1554).

Castellion usou o pseudônimo de Martinus Bellius e publicou esse panfleto condenando as ideias de Calvino. Bellius vem de bellum, latim, e significa guerra. Ele queria combater o erro de terem condenado Serveto. Nessa guerra, posteriormente Bèze incluiu Castellion na sua galeria de monstros. Com isso, Calvino partiu para o contra-ataque ferrenho e extremamente severo. Basiléia sentiu-se ofendida com as acusações feitas por Calvino ao seu ilustre hóspede e mestre. Revogou a interdição e autorizou a publicação do livro de Castellion. Com muitos insultos violentos Castellion esconjurou Calvino.

Nesse ínterim, descobriram que Castellion mantinha relações sigilosas com um inimigo da causa evangélica e reconhecidamente herético: Ochino, um ex-franciscano convertido ao protestantismo, mas que escrevia obras que contrariavam a nova fé. Castellion traduzira uma das obras de Ochino e todo o seu renome e lisura caíram por terra.

Em 1554 Bèze escreveu sua resposta a Castellion. A resposta teve sua versão francesa em 1560, com o título “Tratado sobre a autoridade do magistrado em punir os heréticos e seu modo de proceder”. Não foram tomadas providências pela universidade de Basiléia. Mas, o Sínodo Geral das Igrejas Reformadas da Suíça o condenou por heresia e falsidade, em 1563. Porém, Castellion morreu prematura e repentinamente antes de ser executado (ALMEIDA, 1996).

 1545: solidariedade no caso do suicida Vachat: um verdadeiro furo de reportagem somente em 2008

Na contramão de tudo que vem sendo apontado com relação ao trato com os heréticos, há um verdadeiro furo de reportagem que resgata a imagem de Calvino. Esse furo de reportagem é de 2008 e tem relação com a carta escrita por Calvino lá em 1545.

Essa carta hoje se encontra entre as preciosidades do Museu Internacional da Reforma (MIR), em Genebra. É um manuscrito autografado por Calvino, de 1545, que mostra o reformador em seu ângulo mais humano. Para esse museu, o achado é mais do que uma preciosidade. Ele foi colocado em exposição sob a proteção de uma vitrine, protegido contra a exposição direta de luz, em uma das doze salas do MIR.

O manuscrito datado de 23 de janeiro de 1545 é a única carta conhecida de João Calvino sobre o suicídio. Nela, o teólogo conta que havia sido chamado à véspera por Jean Vachat, um cidadão que havia perfurado duas vezes o próprio abdômen com uma faca, para acabar com seus sofrimentos de tuberculoso e asmático. O texto é surpreendente, raro e inesperado. “Eu o exortei com minhas palavras a armar-se de paciência e a consolar-se na graça de Deus”, escreveu Calvino nessa carta. Antes de morrer, o suicida foi visitado por Calvino e confessou a ele seu erro, como revela o documento. O reformador tratou a questão do suicida de um ponto de vista teológico e sua carta apresenta-o: “[...] confrontado à realidade dos sofrimentos físicos, sofrimentos que terminam se tornando morais à medida que a pessoa tem a impressão de ter sido abandonada por Deus” (COTTRET, 1995, p.237).

Apesar dos esforços de Calvino e dos barbeiros da cidade, que eram os cirurgiões naquela época, Jean Vachat morreu no mesmo dia. Na paisagem religiosa e ética da época, o suicídio era uma questão grave e exigia um procedimento da justiça penal que negava ao suicida até mesmo a sepultura cristã.

O procedimento penal começava com a entrega da queixa ou da constatação do delito. No dia seguinte, Calvino e os outros intervenientes no caso – um segundo pastor e dois cirurgiões –, entregaram, conforme os costumes da época, seus relatórios ao Tenente da Justiça, que era o representante da polícia de Genebra. Mediante a autópsia do corpo, os investigadores chegaram à conclusão que Jean Vachat poderia ter sobrevivido aos ferimentos se ele já não estivesse enfraquecido pela asma, da qual sofria e que era origem do seu gesto desesperado.

Apesar desses elementos, o Tenente da Justiça considerou o caso extremamente escandaloso. Ele permaneceu insensível aos pedidos de Calvino e ordenou que o corpo do suicida fosse enterrado sob o cadafalso, sem sepultura cristã. Isabelle Graesslé analisa que o relatório revela um lado humano de Calvino. Ele mostra que o mais severo dos teólogos não era aquilo que imaginávamos.

Mas, esse retrato poderia não ter sido pintado e essa nova faceta “mais luminosa” da personalidade de Calvino poderia ter permanecido desconhecida para sempre. O motivo? A carta foi roubada e ficou desaparecida por mais de um século.

Na primeira metade do século 19, James Galiffe, um funcionário auxiliar nos arquivos havia criado uma pequena coleção de peças não catalogadas. Ele roubou, então, a carta de Calvino que estava nos Arquivos do Estado de Genebra, assim como o dossiê completo do caso do suicida Vachat.

Os herdeiros do ladrão James Galiffe devolveram as preciosidades aos arquivos apenas em 1915. O único objeto que faltava era o documento assinado por Calvino, que provavelmente havia sido vendido ou dado a um colecionador particular antes dessa data. Ele só retornou à tona em 2003, quando foi leiloado na famosa casa Sotheby’s, em Paris.

A reaparição do raro documento provocou consternação na cidade de Calvino, onde os Arquivos do Estado protestaram com firmeza, mas sem ter sucesso em fazer valer seus direitos. A carta terminou sendo comprada por um colecionador, que morreu em 2005. Os descendentes do colecionador decidiram então revendê-la. Ela foi posta em leilão em julho de 2007, na Christie’s de Londres, onde passou para as mãos do seu novo proprietário pela soma de 70 mil libras. Foi comprada pelo grupo de mecenas que apoiou a construção do Museu Internacional da Reforma7.

Em seus vários salões, o museu lembra sempre da evolução da Genebra de Calvino, do seu estatuto de “Roma protestante” ao desenvolvimento da cidade com grandes construções, promovidas para receber os huguenotes. E a história vem até os dias de hoje, como detalha Olivier Fatio, presidente do conselho da Fundação do Museu, pois trata das guerras religiosas até a resistência ao nazismo, da predestinação às mulheres assumindo postos na Igreja e trabalhando como missionárias no exterior, dos conflitos dogmáticos até ao ecumenismo e o diálogo entre as religiões8.

Esta é uma grande realização para Genebra, que precisou de mais de cem anos até concretizar o seu MIR. O museu não é apenas um local de memória. Sobretudo, quando as pessoas estão hoje entre o desencanto com a religião do passado e à procura de novas respostas às questões espirituais, a Reforma vira um tema extremamente atual.

 Conclusão

O que se sabe de Calvino no Brasil ainda é muito pouco. Há a triste constatação de que nem mesmo os que se dizem fiéis calvinistas conhecem algo de substancial desse reformador universal. Isso chega a estarrecer. Há mesmo alguns que se dizem guardiães da herança deixada por Calvino, mas que não conseguem passar das meras citações a favor ou contra, com acusações pesadas ou defesas apaixonadas. Leitura e compreensão para acusar ou defender? Quase nada. Conhecimento? Praticamente nulo.

Há alguns bons conhecedores de Calvino. Mas, parece que guardaram tudo isso para si mesmos. Por que não pesquisam e escrevem? Por receio ou por descaso, há o risco de se perder o rumo da história e o de perder também o norte para o presente e para o futuro.

Quem sabe alguns retratos ajudem os leitores a visualizarem e a descobrirem a importância de Calvino para o seu tempo e para hoje. Retratos de um homem e de seu tempo. Pois, sem dissociar esse homem de seu tempo é possível aplicar as interpretações de seu mundo e contextualizá-las na busca de soluções para os problemas de nossa própria época.

A opção por apresentar esse retrato de Calvino corresponde a apelar para algo não estático, mas sempre em movimento. No caso de Calvino, seus retratos congelam, condensam, identificam-se com a fugacidade do traço e com a verdade da alma. Portanto, se estão ainda em movimento, estão inacabados, e não poderão ser totalmente fechados ou concluídos. Calvino merece esse retrato em movimento.

Existem vários retratos contraditórios de Calvino. Mesmo que houvesse um só, ainda assim teria várias interpretações, de diferentes observadores. Todo personagem histórico passa por este crivo. O que se pode tentar é desenhar ou insistir em um retrato ainda inacabado do reformador.

Há vários detalhes e traços a considerar. Entre tantos, pode-se detalhar a primeira estada em Genebra e a tentativa fracassada de reforma por parte de Calvino e seu mentor Farel; ou a consequente expulsão de Calvino e o traçado de sua peregrinação por várias cidades como Basiléia, Genebra, Estrasburgo, até regressar novamente a Genebra.

Outros traços podem delinear o amadurecimento desse líder religioso e político, bem como as contribuições que posteriormente deu à cidade e ao mundo. Retratar Calvino é também fazer uma análise de seus escritos. Quando o foco é político, há que se privilegiar o que tange ao seu pensamento político, com todas as nuanças possíveis.

Para a fase de elaboração desse retrato é preciso buscar um entendimento melhor do plano de fundo, da paisagem ou do palco dos acontecimentos: Genebra e a revolução religiosa ocorrida no século XVI. Partindo desse contexto de reviravoltas no cenário religioso e político da Europa renascentista, é possível desvendar alguns traços de sua personalidade e ainda tentar algumas pinceladas sobre o pensamento desse personagem que, por sua vez, foi descoberto por Genebra.

Também é preciso viajar no tempo e no espaço para pintar melhor o plano de fundo: Genebra. A partir da cidade, se pode compreender o protagonista dessa história e descobrir o seu pensamento. A Genebra que ficou conhecida como cidade calvinista, no sentido próprio, era um lugar de refúgio para onde afluíam os insatisfeitos, os insaciáveis, os que amavam a Cristo, desejosos de construir uma sociedade cristã ideal, quinze séculos após a pregação de Jesus.

 

Referências

ALMEIDA, J.T. Calvino e sua herança. [S.l.:s.n.], 1996. p.71.

BIÉLER, A. L’homme et la femme dans la morale calviniste. Genève: Labor et Fides, 1963.

COTTRET, B. Traducteurs et divulgateurs clandestins de la Réforme dans l‘Angleterre henricienne, 1520-1535. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, n.28, p.472, 1981.

COTTRET, B. Tolerance et liberté de conscience? Épistémologie et politique à l’aube des Lumières. Études Théologiques et Religieuses, n.65, p.333-350, 1990.

COTTRET, B. Calvin biographie. Paris: Jean-Claude Lattès, 1995. p.178-237.

FARIA, E.G. (Org.). João Calvino: textos escolhidos. São Paulo: Pendão Real, 2008. p.224-225.

 Notas

2 Ainda a tolerância de Locke é distinta da liberdade de consciência, apregoada por Bayle, segundo o qual essa liberdade repousa sobre o direito de errar. No sentido estrito, a liberdade de consciência não admite qualquer restrição, contrariamente à tolerância que repousa sobre a arbitragem da sociedade. A este respeito ver: Cottret (1990).

3 A esse respeito há um trabalho desenvolvido por Bernard Cottret (1990): Biographie, porém não caberia aqui a detalhada explanação acerca de cada um desses personagens. A indicação fica para os textos: “Bolsec et la foutue predestination”, v.1551, p.218-222; “Saint Servet, hérétique et martyr”, 1553; “Le bcher de Servet”, p. 223-227, 228-234; “Castellion”, p. 235-241.

4 Servet ou Serveto (1511-1553) era um físico espanhol. Descobriu que a doutrina Nicena da Trindade usava termos não-bíblicos, e após estudar a Bíblia e os padres anti-nicenos formulou outro ponto de vista, rico em teologia eucarística e batismal. Publicou seus pontos de vista em “De trinitatis erroribus libri VI” (1531), e novamente em “Cristianismi restitutio” (1553), o que ocasionou a sua execução como herege em Genebra. Ele considerava o Espírito Santo como uma força e não como uma pessoa. Negou a eterna geração do Verbo etc. Era também um geógrafo e anatomista, e cria que a Bíblia deveria ser estudada em seu contexto histórico (Westminster Dictionary of Church History, p.763; Oxford Dictionary, p.1263).

5 Vienne, no Dauphiné francês, é uma comuna francesa do Departamento de Isère. Seu nome é aportuguesado para Viena, mas isso causa confusão com a outra Viena, a capital da Áustria. Houve, em Vienne, o XV Concílio Ecumênico que condenou à extinção a Ordem dos Cavaleiros Templários, entre 1311 e 1312.

6 Disponível em: <http://fr.wikipedia.org/wiki/Michel_Servet>. Acesso em: 23 jul. 2008.

7 Disponível em: <http://www.swissinfo.ch/por/swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853>. Acesso em: 23 maio 2008.

8 Disponível em: <http://www.swissinfo.ch/por/swissinfo.html?siteSect=105&sid=8620853>. Acesso em: 10 jun. 2008.

- Como citar este artigo/How to cite this article SILVESTRE, A.A. Calvino e o trato com os hereges em Genebra. Reflexão, v.43, n.1, p.155-167, 2018. http://dx.doi.org/10.24220/2447-6803v43n1a3695

- Fonte do artigo: Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/5765/576562065012/html/index.html#B05. Acesso em 05 de out. 2020.

- Fonte/imagem: Genebra 1550. Disponível em: https://www.editorareformata.com/recursos/prefacio-ao-salterio-de-genebra-de-1543-por-joao-calvino.

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