David Martyn Lloyd-Jones *
Nada é mais significativo, quanto à grande mudança que
se deu no campo da teologia durante o século passado, do que o lugar agora
cedido e a atenção dada ao grande homem de Genebra, que é o assunto desta
palestra.
Até há quase vinte anos, dava-se pouca atenção a João
Calvino, e quando alguém falava dele era para amontoar insultos sobre ele, com
desprezo. Ele era visto como uma pessoa cruel, dominadora e dura. Quanto à sua
obra, dizia-se que ele foi o autor do sistema teológico mais opressivo e
ferrenho que já se viu. Segundo essa crença, os principais efeitos da obra que
ele realizou no campo da religião foram colocar e manter as pessoas num estado
de escravidão espiritual e, numa esfera mais ampla, abrir o caminho para o
capitalismo. Acreditava-se, pois, que a sua influência foi totalmente nociva e
que ele não era de nenhum interesse palpável para o mundo, exceto o fato de ser
um espécime, se não um monstro, no museu da teologia e da religião.
Não é essa a situação hoje, porém. De fato, faz-se
mais menção dele agora do que em quase um século, e Calvino e o calvinismo são
temas de muito argumento e debate nos círculos teológicos. Talvez seja o
avivamento teológico ligado ao nome da Karl Barth que explica isto, se a gente
vê as coisas externamente. Mas também é preciso explicar Barth e a sua posição.
Que foi que o levou de volta a Calvino? A sua própria resposta é que ele não
pôde encontrar em nenhum outro lugar uma explicação satisfatória da vida,
especialmente dos problemas do século vinte, nem tampouco uma âncora para a sua
alma e para a sua fé em meio ao fragor da tormenta. Seja qual for a explicação,
o fato é que se formaram sociedades calvinistas neste país, nos Estados Unidos
e Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e na África do Sul, à parte das que se
formaram noutros países da Europa antes da guerra. De fato, foi realizado um
Congresso Calvinista Internacional em Edimburgo em 1938, e duas conferências
similares foram levadas a efeito na América durante a guerra. Também são
publicados regularmente periódicos para discussão de tópicos e problemas do
ponto de vista do ensino de Calvino; e este ano o livro-texto que está sendo
usado nas aulas teológicas do New College, Edimburgo, é a Instituição da
Religião Cristã (as “Institutas”), de João Calvino. Muito me agradaria se eu
pudesse acrescentar que houve um movimento similar em Gales.
Portanto, o tempo está maduro para olharmos de relance
este homem que influenciou a vida do mundo em tão grande medida. Que dizer do
homem propriamente dito? Ele nasceu em Noyon, na Picardia, em 1509. Sabemos
muito pouco do seu pai e da sua mãe, exceto que a sua mãe era famosa por sua
vida piedosa. Desde o princípio Calvino mostrou que tinha capacidades mentais fora
do comum. Os seus pais eram católicos romanos, e a sua intenção natural era
preparar o seu inteligente filho para uma carreira eminente na igreja. Daí, os
seus campos de estudo eram filosofia, teologia, direito e literatura. Embora
sobressaísse em todas as áreas, a sua esfera favorita era a literatura, e o
vemos em Paris, aos vinte e dois anos de idade, como erudito humanista, sendo a
sua maior ambição na vida ter renome como escritor. Era um aluno tão
extraordinário que muitas vezes fez preleções aos seus colegas de estudos
substituindo os seus professores, e quanto ao seu estilo de vida e à sua
conduta, ele era conhecido por sua sobriedade. Na verdade, ele dava ênfase à
distinção moral com tanta veemência que recebeu o apelido de “O Caso
Acusativo”. Mas, como acontecera com Lutero antes dele, e com João Wesley e
muitos outros depois, a moralidade não foi suficiente para mitigar sua alma
sedenta. Quando estava com vinte e três anos de idade, experimentou a conversão
evangélica, e o curso da sua vida se transformou completamente. Tendo enxergado
a verdade, e tendo experimentado o poder desta em sua alma, deu as costas à
igreja de Roma e se tornou protestante. Não dispomos de tempo para seguir a
história da sua vida, porém sabemos que ele passou quase todo o resto da sua
vida em Genebra, como ministro do evangelho. Trabalhou ali desde 1536 até a sua
morte, em 1564, com exceção do período de 1538 a 1541, quando as autoridades
genebrinas o expulsaram, e ele foi para o “exílio”, em Estrasburgo.
Calvino era magro, de estatura mediana, testa larga e
olhos penetrantes. Sua saúde foi muito frágil durante a sua vida toda, porque
ele sofria de asma. Era extremamente difícil persuadi-lo a comer e a dormir.
Apesar de ter um espírito senhoril, o testemunho dos que o conheceram melhor
sugere que nunca houve um homem tão humilde e santo como ele. Seu principal
objetivo na vida era glorificar a Deus, e ele se dedicou a isso completamente,
sem pena do seu corpo nem dos seus recursos. Ele gostava de pensar em si mesmo
como escritor cristão e, se tivesse seguido a sua inclinação pessoal, teria
limitado a sua obra unicamente a esse campo; entretanto um amigo o ameaçou com
o juízo de Deus, se não se comprometesse a pregar, e o resultado foi que,
segundo a principal autoridade sobre a sua vida, ele pregou em média todos os
dias e, com frequência, duas vezes num dia, em Genebra, durante vinte e cinco
anos. Devido à asma, ele falava lentamente, e não se poderia descrevê-lo como
orador eloquente. Tampouco se pode pensar nele como um pregador que só apelasse
para a mente e para o intelecto. Uma certa ternura piedosa muitas vezes
irrompia nas reuniões, subjugando os presentes.
O mundo lembra-se dele, não tanto como pregador, mas
como autor de cinquenta e nove obras volumosas. Ele escreveu trinta comentários
dos livros da Bíblia, incluindo-se todo o Novo Testamento, menos a Segunda e a
Terceira Epístolas de João e o livro de Apocalipse.
Além disso, Calvino era um constante missivista e, das
suas cartas, 4000 foram publicadas. Também teve infindáveis oportunidades, numa
época amante de polêmicas, da fazer uso da sua incomparável habilidade como
polemista. Ninguém se lhe igualava no uso do “florete”, e quando a isso se
acrescenta o seu talento especial para a lógica, vemos nele, possivelmente, o
maior “polemista” que o mundo já viu.
Quando recordamos que ele estava perpetuamente
envolvido em contendas ou em consultas com as autoridades de Genebra,
concernentes às condições morais e sociais da cidade, não nos surpreende que
tenha morrido com apenas cinquenta e cinco anos de idade. O mistério é como ele
conseguiu realizar tanto em tão pouco tempo. Ninguém sabe onde ele foi
sepultado, porém a sua maior contribuição para a literatura teológica, a
Instituição da Religião Cristã (as “Institutas”), sobressai como um memorial
para ele. Ele escreveu essa obra quando tinha vinte e cinco anos de idade, e a
primeira publicação dela foi na Basiléia, em 1536, todavia Calvino continuou
trabalhando nela, ampliando-a e reeditando-a durante a sua vida toda.
É sem dúvida a sua obra prima. A verdade é que se pode
dizer que nenhum outro livro teve tanta influência sobre o homem e sobre a
história da civilização. Não é tampouco exagero dizer que foram as “Institutas”
que salvaram a Reforma Protestante, pois elas constituem a summa theologica do protestantismo, e a mais clara declaração de fé
que a fé evangélica já teve.
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Texto de David Martyn Lloyd-Jones. Extraído do livro “Discernindo os Tempos”, do. São
Paulo: Editora PES, p. 42-44. Originalmente, palestra radiofônica para a BBC,
em Gales, em 25 de junho de 1944.
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