Arleilson Albino *
É sabido de
todos que João Calvino teve uma vida curta, porém de muita produção. Ele não
conheceu descanso nesta vida: pastor, professor, homem de estado, conselheiro,
e escritor. Nos anos triunfais e finais de sua vida, Calvino contabilizou
milhares de cartas endereçadas a mais de 300 destinatários diferentes.
Prisioneiros, governantes, fiéis, reis e duques. Escreveu até o final de
sua vida.
E durante ela,
Calvino sofreu várias enfermidades. Sua saúde era frágil. As dores que
começaram a se apresentar em 1555. E mesmo em meio às dores de artrite, crises
de tuberculose, pleurisia, hemorroidas, gota, febre quartã, enxaqueca,
dispepsia, asma, e crises renais agudas, (junte-se a isso uma vida de lutas e
controvérsias com adversários tenazes) Calvino persistia em uma extraordinária
lucidez de espírito, sendo altamente produtivo e operoso. Cumpria todos os
deveres, com a maior pontualidade, no púlpito, na Academia e no Consistório.
É espantoso
como muitos mestres acadêmicos seculares, e até mesmo alguns cristãos, em prol
da defesa de suas doutrinas, tentam passar a imagem de um Calvino, inquiridor,
carrasco, pai do capitalismo, e alguns até mesmo de assassino. Os arminianos
sinergistas, por sua vez, concentram seus ataques na doutrina da eleição, o que
faz com que muitos associem Calvino a somente esta doutrina.
O Rev. Dr.
Hermisten Maia, pesquisador sobre calvinismo, sempre diz que é curioso como
Calvino escreveu mais sobre oração do que sobre eleição, mas isso ninguém
repara. O Calvino que tem sido atacado em algumas universidades e até em alguns
seminários, é um Calvino atacado por ignorantes de sua vida de piedade e
diligência.
Certamente
desconhecem que todas as suas economias, vindas da venda da biblioteca e do
mobiliário foram legadas a seu irmão Antônio Calvino e filhos, fazendo uma
pequena doação à caixa dos estudantes pobres e outra aos estrangeiros
necessitados. A propósito, comenta Goguel: “Tudo isso prova o desinteresse
deste homem que havia sido o árbitro da república de Genebra e de uma parte da
Europa ocidental. Sua fortuna não atingia a cifra de 255 escudos!”
Calvino encerra
uma carta a Cristofer Piperin assim: “Mas se durante a minha vida não escapei à fama de ser um homem rico, a
morte indicará por fim esta imputação lançada ao meu caráter”. Com
efeito, o seu testamento provou a sobriedade de sua fortuna e a imputação
caluniosa de seus adversários.
Seus ferrenhos
acusadores ignoram que Calvino não se deixava absorver pelos bens materiais.
Que rejeitou aumento de estipêndio, recusava presentes e vivia com muita
sobriedade. Em Estrasburgo, seus proventos não lhe permitiam muitas regalias e
teve de admitir pensionistas em casa. O cardeal Sadoleto, em visita a Calvino,
ficou espantado ao ver que o “Papa de Genebra” não habitava num palácio
episcopal e sim numa modesta habitação e, em vez de um cortejo de servidores,
era ele mesmo o porteiro que o saía a receber.
Conta-se do
papa Pio IV que, ao ouvir a notícia da morte de Calvino, rendeu-lhe tributo de
admiração nestas palavras: “A força deste herege nisto consistia: O
dinheiro não tinha para ele a mínima atração. Se tivesse eu servos tais, meus
domínios se estenderiam de mar a mar”.
Somente um
homem muito piedoso poderia receber um testemunho de sua esposa que se
encontrava à beira da morte. Calvino, em 7 de abril de 1549, escreve para
Pierre Viret, sobre a morte de sua esposa, Idelette de Bure. Em um trecho dessa
carta, se acha o seguinte relato: “...Fui privado da melhor companhia de minha
vida, daquela que, se assim lhe fosse ordenado, estaria disposta a partilhar
não apenas da minha pobreza, mas até mesmo da minha morte. Enquanto viveu, foi
a fiel auxiliadora do meu ministério. Nunca tive nela o menor obstáculo.
Durante toda a sua enfermidade, ela jamais foi um fardo para mim, mas estava
mais ansiosa a respeito de seus filhos do que de si mesma. Como eu temia que
esses cuidados particulares a perturbassem inutilmente, aproveitei a ocasião,
no terceiro dia antes de sua morte, para mencionar que não deixaria de cumprir
o meu dever para com os seus filhos. Pegando o assunto imediatamente, ela
disse: “Já os confiei ao cuidado de Deus”. Quando lhe disse que isso não me
impediria de cuidar deles, ela respondeu: “Eu sei que você não negligenciará aquilo que foi entregue ao cuidado de
Deus”.
Esse mesmo fato
é relatado na carta que Calvino escreve a William Farel, em 11 de abril de
1549: “...declarei na presença dos irmãos, que, doravante, cuidaria deles como
se fossem meus. Ela respondeu: “Já os entreguei ao cuidado do Senhor”. Quando
respondi que isso não me impediria de cumprir meu dever, ela respondeu
imediatamente: “Se o Senhor cuidar
deles, sei que serão confiados a você”.
É louvável como
mesmo no período mais crítico de padecimento, a mente de Calvino conservava
todo o vigor, trabalhando com os seus secretários. Vale a pena “ouvir” o
depoimento de Teodoro de Beza, conforme refere Bungener:
“Não obstante
isso, não cessou ele de trabalhar. Nessa última enfermidade, traduziu do latim
para o francês a Harmonia Sobre Moisés, fez a revisão da tradução de Gênesis,
escreveu sobre o livro de Josué, e finalmente, passou em revista e corrigiu a
maior parte das anotações francesas sobre o Novo Testamento, que outros haviam
anteriormente compendiado. Além disso não se poupou aos interesses da Igreja,
respondendo por palavra e por escrito sempre que se fazia necessário; ainda
quando de nossa parte o exortávamos a ter mais cuidado de si mesmo. Replicava
ordinariamente que nada fazia de mais. Que tolerassem que Deus o achasse sempre
vigiando e trabalhando na sua obra conforme ele pudesse, até o último suspiro.”
Somente um
homem piedoso, à beira da morte, seria capaz de entoar, muito debilmente, o
hino “Despede, Senhor, o teu servo em paz”.
Somente um
homem piedoso terminaria sua vida repetindo as palavras do Apóstolo Paulo: “Os
sofrimentos da presente vida não podem ser comparados com a glória vindoura”. Gaberel
refere que ele não pode acabar a última palavra.
O ano de 1564
marcou o fim de uma vida frutífera. Calvino faleceu no dia 27 de maio, faltando
um mês e treze dias para completar 55 anos. Alguns lembram desse ano porque foi
o mesmo ano do nascimento de Shakespeare e de Galileu e da morte de Miguel
Ângelo.
Teodoro de Beza
descreveu assim esse fato: “Desta forma voou para o céu, quando o sol penetrava
no ocaso, o grande luminar que era a lâmpada da Igreja. Pela noite e pelo dia
seguinte imenso era o pesar e a lamentação na cidade, porquanto a República
perdera o seu mais sábio cidadão e a Igreja o seu pastor fiel, a Academia um
mestre incomparável. Lamentavam todos a partida do pai comum e do melhor
confortador abaixo de Deus. A multidão se encaminhava à câmara funerária e
dificilmente se separava daquele corpo inanimado. Entre os visitantes estava o
distinto embaixador inglês na França, que havia ido a Genebra para travar
conhecimento com o célebre homem e desejava ver agora os seus despojos”.
O último pedido
de Calvino foi atendido. Ele pediu que o lugar de sua sepultura não fosse
indicado. Um funeral simples, com poucas palavras e nenhum cântico. Sem lápide
na sepultura do cemitério comum de Plainpalais. Uma pequena lápide com as
simples iniciais J. C. foi erigida muito tempo depois. Seu verdadeiro epitáfio
foi a sua vida!
Bungener assim
comenta a singeleza da sepultura de Calvino: “Tem-se visto estrangeiros tomados
de indignação, vendo esta pequena lápide, que, aliás, a contemplam com maior
emoção do que se estivesses diante de um rico mausoléu....”
O historiador
Guizote, falando de Calvino, assim conclui um de seus livros: “Ardente na fé,
puro nos motivos, austero na vida e poderoso nas obras, Calvino é um daqueles
que merecem grande fama. Três séculos nos separam dele, mas impossível é
examinar seu caráter e sua história sem que se experimente, quando não seja
afeto e simpatia, ao menos um profundo respeito e admiração para com um dos
grandes reformadores da Europa e um dos grandes cristãos da França.”
Calvino tem
sido diversamente apreciado por juízes competentes, críticos severos e
adversários irreconciliáveis. O cético Renan, dissentindo muito embora dos
conceitos teológicos do doutrinador de Genebra, considera-o como “o maior
cristão do século em que viveu”. Foi qualificado de “Aristóteles da Reforma”,
de “Tomás de Aquino da Igreja Reformada”, de “Licurgo da democracia cristã”, de
“Papa de Genebra”. Como figura eclesiástica, não faltou quem o comparasse a
Gregório VII e a Inocêncio III.
Quando Calvino
morreu, Zwinglio, Lutero e Melanchton, grandes vultos da Reforma, já haviam
cerrado os olhos. Farel viveu ainda um ano e João Knox mais oito.
Calvino morreu
ainda no meio das lutas da Reforma, como se deu com Lutero e os principais
reformadores. Eles não criaram uma nova religião e nunca a tal se propuseram.
Apenas entenderam firmar a Igreja nos velhos princípios dos tempos apostólicos,
rejeitando as inovações doutrinárias. Hoje, no Brasil e em vários países,
precisamos de Calvinos, Luteros, at all, que se proponham à mesma tarefa
daqueles grandes reformadores, em seus respectivos países.
No terceiro
centenário da Reforma em Genebra, em 1835, cunhou-se uma medalha comemorativa,
tendo num lado a imagem de Calvino com o nome e data do nascimento e da morte.
No reverso, via-se o púlpito de Calvino com o texto: “Conservou-se firme
como se visse o invisível” (Hb.11:27), e a inscrição latina: “Corpore
fractus, Animo potens, Fide Victor, Ecclesiae reformator, Genevae pastor et
tutamen”.
Neste resumo
citei vários testemunhos de homens ilustres sobre a personalidade de Calvino.
Quero trazer um último depoimento de um crítico neutro, Ernesto Renan, extraído
de “A Reforma”, de Lindsay (p.83). Ele é insuspeito pelo fato de não ser
calvinista. Diz ele:
“Era Calvino um
daqueles homens absolutos que parecem ter sido vasados de um só jato num molde,
e que se estudam por meio de um simples olhar. Uma carta, um gesto é bastante
para se formar deles um juízo... Não dava importância a riquezas nem a títulos,
nem a honras, indiferentes às pompas, modesto no viver, aparentemente humilde,
tudo sacrificava ao desejo de tornar os outros iguais a si. Excetuando Inácio
de Loyola, não conheço outro homem que pudesse rivalizar com ele nestes raros
predicados. É surpreendente como um homem cuja vida e cujos escritos atraem tão
pouco as nossas simpatias se tornasse o centro de um tão grande movimento e que
suas palavras tão ásperas, sua elocução tão severa, pudessem ter uma tão
espantosa influência sobre os espíritos de seus contemporâneos. Como se pode
explicar, por exemplo, que uma das mulheres mais distintas de seu tempo, Renata
de França, que, no seu palácio de Ferrara, se via cercada dos mais brilhantes
talentos da Europa, se deixasse cativar por aquele severo doutrinador, enveredando,
por sua influência, numa senda que tão espinhosa lhe deveria ter sido?
Semelhantes vitórias só podem ser alcançadas por aqueles que trabalham com
sincera convicção. Sem manifestar aquele ardente desejo de procurar o bem dos
outros que foi o que assegurou a Lutero o bom êxito de seus trabalhos, sem
possuir o encanto, a perigosa, posto que lânguida doçura de S. Francisco de
Salles, Calvino saiu vitorioso, numa época e num país em que tudo anunciava uma
reação contra o Cristianismo, e isso simplesmente por ser o maior cristão do
seu tempo!”
Em relação a
caracteres assim vasados, a Igreja não pode senão dizer com o salmista: “Non
nobis, Domine, non nobis, sed nomie tuo da gloriam” (Sl.115.1).
Encerro dizendo
como registrado na medalha comemorativa, que, Calvino, débil na estrutura
física, vigoroso porém na organização intelectual e moral, simples no viver,
austero nos costumes, indefesso no trabalho, irredutível na fé, erudito no
saber, nobre nas intenções, invulgar na coragem, hábil no raciocínio – soube
como poucos neste mundo, redimir prudentemente o seu tempo e empregar o talento
e os dons de que fora dotado na glorificação do Criador e Redentor de sua alma.
O emérito doutrinador e piedoso homem de Deus ocupará sempre um lugar de
destaque entre os grandes vultos da Igreja, sem embargo dos anátemas que os
adversários de todos os tempos procuram fazer descer sobre sua memória
respeitável.
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